Meus dedos pressionavam e circulavam o ferro, mantendo-me no caminho reto. Meus pés giravam os pedais em um ritmo quase simultaneo. O suor escorria, denunciando o esfor?o; fazia anos que eu n?o me dedicava assim. Logo no primeiro dia de aula, eu enfrentava uma ladeira íngreme e curva. O topo parecia inalcan?ável. Eu já perdia as esperan?as.
— Mas que droga... era melhor ter ido andando, que saco. Assim eu vou perder as boas vindas do diretor! — Murmurei, Exausto.
N?o demorou muito para que eu avistasse algumas pessoas seguindo pelo mesmo caminho que à mim, e ainda por coincidência, com uniformes semelhantes ao meu, caminhando em dire??o à escola. N?o havia dúvidas: eu estava perto.
De tempos em tempos, também havia carruagens elegantes que passavam, conduzindo alunos da mesma escola. Suas roupas impecáveis e a postura altiva faziam-me sentir menor, como se a distancia entre nós fosse muito mais do que aquela ladeira. Enquanto eles chegavam com facilidade, eu me arrastava. Era impossível n?o sentir uma pontada de amargura. N?o era inveja, mas aquela velha sensa??o de n?o pertencer.
Naquele instante, eu parei de pedalar, coloquei meus pés sobre o ch?o sentindo uma vergonha quase insuportável, imaginando aquelas pessoas me vendo assim: suado, com as roupas manchadas de poeira e o cabelo desarrumado. O contraste era evidente. Talvez tivesse sido melhor vir a pé. Afinal, eu sou Levi Valdrius, herdeiro de uma das famílias mais prestigiadas de Eldoria, e futuro "Grande Rei Mago". Ser visto nesse estado era impensável.
Um Valdrin como eu, cambaleando e empurrando uma bicicleta velha, seria motivo de risos e cochichos. Humilhante, admito. Mas o que eles nunca entenderiam — e talvez nem precisassem — era de que minha vida nunca dependeu de falas aparências. Nunca fugirei de nada! E n?o seria hoje que isso aconteceria. Nunca foi sobre manter o orgulho intacto. Eu conhecia o peso do meu sobrenome, mas também sabia o que era carregar minhas próprias batalhas.
Suor e exaust?o eram provas de que eu ainda estava aqui, persistindo.
Era continuar, mesmo quando o mundo tentava me parar.
— Mas no que eu estava pensando? Eu irei subir essa ladeira custe o que custar! — gritei para mim mesmo, enchendo-me de determina??o. Com um surto de energia, acelerei as pedaladas, ignorando a inclina??o íngreme. — Vamos lá! Do que adianta se...
Minha bicicleta rugiu. A corrente travou, os pedais caíram. O susto e o foco na subida me impediram de reagir a tempo. Meus pés escorregaram, e meu instinto me fez girar o corpo para me proteger. O ch?o era duro como pedra, e eu sabia que aquilo ia doer. A última coisa que consegui dizer foi:
— Droga...!
Foi uma fatalidade miserável. Eu estava t?o perto do topo, mas sequer consegui alcan?ar o final. Meu corpo ficou ali, caído no ch?o. Alguns arranh?es, nada grande o suficiente para virar lembran?a. Por sorte — ou azar —, a rua estava vazia. Deserta, como se estivesse abandonada, como se eu tivesse sido abandonado.
Mas eu n?o podia ficar ali. Precisava chegar à escola, custasse o que custasse. E n?o era só uma mera escola. Era aquela escola. O tipo de lugar que parecia reservado a pessoas que já nascem predestinadas a grandes feitos.
O que n?o era o meu caso. Diferente dos meus irm?os, para quem tudo parecia natural, como se o destino tivesse tra?ado um caminho claro e reto. Os sempre admirei por isso — e, no fundo, sempre doeu. Eu tropecei em cada passo. Me matricular nesse lugar foi a coisa mais difícil que já fiz. Cada obstáculo parecia um lembrete cruel de que eu estava for?ando uma porta que nunca foi feita para mim.
E, às vezes, me pergunto: eu deveria estar aqui? Essa dúvida me persegue como uma sombra, sussurrando que sou uma farsa. Que, por mais que tenha lutado, nunca será suficiente. Que este lugar pertence a quem nasceu para ele, n?o a quem precisa implorar por uma chance.
Mas eu continuo. Porque, no fundo, mesmo que eu esteja nadando contra a corrente, eu n?o consigo — ou talvez n?o saiba — desistir!
Levantei a bicicleta. Minhas pernas pesavam. N?o por agora, mas por tudo que me trouxe até aqui. Meu pai sempre dizia que nossa família carregava a persistência como um fardo de honra. E, em dias assim, eu entendia. "Somos muitos" — mais do que o normal — e cada um trilhou seu próprio caminho, sempre inalcan?ável. Eu fui ficando para trás. N?o por falta de esfor?o, mas porque meu passo sempre foi mais curto. Mais hesitante.
Subi a ladeira sem pressa, sem raiva. Cada passo era um lembrete de quem eu era. N?o o mais rápido, nem o mais forte. Mas aquele que nunca desistia.
E talvez isso fosse o suficiente.
"Só mais uma das tantas coisas miseráveis que acontecem no meu dia a dia", pensei.
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Ao chegar à escola, me deparei com a entrada movimentada. O grande port?o de ferro, adornado com símbolos, que se abriam sem parar, recebendo novos alunos. Havia grandes carruagens luxuosas que despejavam estudantes bem-vestidos, eles trocavam cumprimentos animados entre si. Vínculos sociais e políticos, isso era mais uma das chances que essa escola podia proporcionar. Outros vinham a pé como eu, alguns sozinhos, outros em grupos, discutindo suas expectativas para o primeiro dia.
Parei diante do port?o, impressionado com sua grandiosidade. Ladeado por um mármore robusto, ostentava entalhes minuciosos formando a marca da escola: uma sereia. Mas n?o era apenas um emblema qualquer. Seu olhar entalhado com orgulho parecia sondar quem passava, sua cauda sinuosa terminava em uma ponta afiada. A própria metáfora do que diziam sobre as sereias: belas, encantadoras, mas letais.
Essa escola seguia o mesmo princípio. Aqui, n?o bastava ser inteligente; era preciso usar as próprias qualidades como armas. Para alguns, um dom natural. Para outros, uma conquista. Quem passava por aqueles port?es aprenderia a se defender — ou atacar, se fosse necessário. Quem n?o fosse digno... se perderia.
Quando finalmente desviei os olhos do port?o e dei o primeiro passo, uma voz ecoou:
— O que um "inseto" está fazendo aqui? Se perdeu no caminho para o lix?o?
— Hum... come é que é? — perguntei franzindo a testa, surpreso.
Era um garoto da minha idade. Vestia um sobretudo preto sobre o uniforme da escola, marcado pelo emblema da sereia. Cabelos desgrenhados, dentes pontiagudos — o tipo de pessoa que transparecia malícia.
— Calma, Roxin — disse outro, hesitante. — Acho que já vi esse cara em algum lugar antes... ele n?o me é estranho.
— E daí?! — rosnou Roxin. — Um lixo como ele n?o deveria estar no meu campo de vis?o, muito menos na frente da minha escola Dermite! — Seus olhos se estreitaram ao notar minha bicicleta. — E ainda veio assim? Por que n?o sai logo da minha frente antes que eu fa?a?
Suspirei, tentando ignorar o inc?modo.
— Olha, cara, podemos só fingir que isso n?o aconteceu. Afinal, se n?o percebeu, estou vestindo o mesmo uniforme que você. Sou um aluno dessa escola, deve saber o que isso significa.
— Isso lá importa, seu lixo? — Ele riu. — Esse seu rosto feio e desagradável entrega sua linhagem... podre.
Minha paciência já estava no limite.
— Melhor calar a boca antes de que eu tenha...
Antes que eu terminasse, o pé dele subiu. Num instante, minha bicicleta estava no ch?o, o metal tilintando no impacto.
Cerrei os punhos.
— Mas que droga foi essa?
Roxin avan?ou, rosto próximo ao meu. O sorriso afiado brilhava.
— Anda, rato. Me mostra do que é capaz. Se acha que um lixo como você pode simplesmente entrar na minha escola, está muito enganado. Eu te ordeno, leve sua tralha para bem longe daqui.
Meu sangue fervia. Isso acontecia sempre. Desde pequeno, me tratavam diferente dos meus irm?os, como se eu fosse inferior. Talvez fosse minha aparência mais "plebeia". Talvez meus olhos gentis demais. Mas, no fim, só existia uma forma de lidar com isso.
Soltei um suspiro, relaxando os ombros.
— Parece que você n?o me reconheceu.
— E daí? Some antes que eu te fa?a sumir. — Roxin estufou o peito. — Apesar da escola Dermite aceitar famílias menores, eu, como herdeiro da família Dermite, vou mudar isso com minhas próprias m?os!
— Ha — Ao ouvir suas palavras, risadas se afrouxam nos meus lábios.
— Ei! Do que tá rindo, seu lixo?
— Do seu sonho. Ele é t?o estúpido que me deu dor de barriga.
— Q-que?!
— Levi. — interrompi, encarando-o de frente. — Herdeiro mais jovem da lendária linhagem dos magos. Filho legítimo da família Valdrius. Descendente direto de Virgil Valdrius e Glória Valdris. E, a partir de hoje, o mais novo aluno da Escola Dermite. Muito prazer.
O silêncio se espalhou. Alunos ao redor pararam para olhar. Roxin recuou um passo, olhos arregalados.
— U-um... Valdrin? Aqui?! Eu... eu n?o sabia...!
Aproveitei a chance e ergui a bicicleta, limpando a poeira. Minha express?o era calma, mas meu olhar, firme.
— N?o precisam ficar tensos — sorri. — Aposto que est?o animados para o primeiro dia, assim como eu.
Roxin e seu amigo trocaram olhares estranhos. Eu já conhecia essa rea??o. Meus irm?os eram frios como pedra. Eu, por outro lado, sempre fui mais... descontraído.
— Cara... você pode ter mexido com um Valdrin...
— Tch... ele tá mentindo. Tem que estar. — Roxin estreitou os olhos. — Você também acha, né?
— é-é claro... Apesar do cabelo carmesim do cl? Valdrius, do símbolo da família no ombro e da imponência de um Valdrin... você realmente acha que alguém t?o sorridente e... "feio" quanto ele pode ser um deles?
— Pois é... Você tem um ponto forte.
— Olha, eu t? ouvindo tudo, viu?
Eles se sobressaltaram, mas continuaram sussurrando. Alguns alunos que passavam riram discretamente.
Desde pequeno, tive uma audi??o afiada. Meu tato distinguia cheiros de todos os tipos, meus reflexos eram rápidos, minha vis?o captava qualquer movimento. Atributos perfeitos para um...
— Grande Mago!
Percebi que falei alto. Mais alunos me olharam. Roxin parecia cada vez mais confuso.
— Se preferem ficar cochichando para sempre, fiquem à vontade — anunciei, cruzando o port?o. — Mas eu vou entrar agora!
O burburinho crescia. A Escola Mágica Dermite n?o era qualquer institui??o; formava a elite dos magos de Eustasia. Somente descendentes de grandes linhagens estudavam ali.
Os alunos vestiam trajes refinados, cada uniforme ostentando insígnias das casas de onde vinham. Os Nox, mestres das sombras. Os Volkaris, dominadores do fogo. Os Esculpires, especialistas em vento e espionagem. E, claro, os Valdrius, uma das linhagens mais poderosas da história mágica.
Mas eu, Levi Valdrius, nunca fui tratado como um verdadeiro herdeiro dessa casa.
Roxin e seu amigo notaram a aten??o que eu atraía. O garoto ao lado dele pigarreou:
— Roxin, se ele realmente for um Valdrin... tem direito de estudar aqui, n?o importa o qu?o fraco pare?a.
Roxin cerrou os olhos, avaliando-me de cima a baixo. Sua express?o oscilava entre incredulidade e desprezo.
— Eu já li tudo sobre os Valdrin — murmurou. — E tenho certeza de que ele n?o está entre eles. O cl? Valdrius teve muitas ramifica??es antes de se tornarem uma linhagem fechada. Ele deve ser de um ramo distante. Algum bastardo esquecido.
Ele estava perto da verdade.
Mas n?o precisava saber disso.
E foi assim que tudo come?ou.
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A sala era ampla, iluminada por janelas que refletiam a luz do sol em cristais flutuantes. A mulher à minha frente parecia etérea em suas vestes brancas, quase parte da decora??o da escola. Mas havia algo no sorriso dela... algo que me inquietava.
Ela segurava uma prancheta com anota??es que eu n?o conseguia ler, mas que claramente falavam de mim. Um pressentimento ruim se formava no meu peito. Ent?o, com a voz treinada e serena, ela disse:
— Eu sinto muito...
Minha respira??o falhou. Meus dedos tremeram.
— Mas seu nível de poder mágico n?o chega nem perto da média.
Pisquei, confuso. Certamente ouvi errado. Isso n?o fazia sentido. Meu peito apertou, meus músculos travaram. Para um mago, a afinidade mágica era tudo. Era o que definia sua existência.
Alguém com alta afinidade aprendia feiti?os complexos em meses. Com uma afinidade mediana, levava anos. Mas para alguém como eu...
Minha mente girava. Se fosse verdade, algo t?o básico quanto conjurar uma bola de fogo poderia levar décadas. Meu reservatório de mana seria insignificante. Eu nunca teria poder suficiente para grandes feiti?os. Nunca teria o talento natural que esperavam de um Valdrin.
— O quê? Isso é impossível... — minha voz saiu fraca, um sussurro carregado de incredulidade. — Eu sou um Valdrin! De sangue puro! Isso é um absurdo, como alguém como eu, da linhagem dos magos poderia n?o ter afinidade mágica?!
A mulher inclinou a cabe?a, for?ando uma express?o compreensiva, mas o sorriso falso permaneceu.
— Seus testes indicam uma conex?o extremamente fraca com qualquer tipo de energia arcana.
As palavras dela me atingiram como um soco no est?mago. Todo o ar pareceu sumir da sala.
— Isso é... alguma pegadinha, né? — balbuciei, a garganta seca. — Meus irm?os planejaram isso com você? Isso está sendo filmado neste momento, né? né? NEEEé???!!
— Me escuta!
Ela tocou nos meus ombros, mas eu mal conseguia sentir. Seu olhar se misturava com pena e indiferen?a, como se estivesse acostumada a dar esse tipo de notícia.
— Você pode continuar estudando aqui. — disse, ajustando a prancheta. — Mas sem uma afinidade sólida... Isso n?o importa, concerteza vai ser melhor trazer nóticias boas para casa do que fazer esse momento uma perda de tempo, confie no que eu digo.
Ela falou como se n?o estivesse destruindo tudo o que eu sonhava. Como se n?o estivesse me arrancando qualquer esperan?a.
— Eu n?o ligo...
— Significa que escolheu ficar?
— Eu disse... — ergui a voz, os olhos ardendo entre vergonha e fúria. — Que n?o ligo para à merda dessa escola!
Ela recuou, surpresa com o meu tom.
— Eu vou para casa e vou relatar isso. Vou contar a todos o qu?o irresponsáveis s?o os instrutores do Colégio Dermix! E n?o pense que vai sair impune assi... professora.
Gritei, minha voz ecoando pela sala. N?o esperei resposta. Saí com passos firmes, sentindo algo se partir dentro de mim a cada passo. Atravessar os corredores foi como um furac?o, ignorando olhares e sussurros curiosos.
Ao passar pelos port?es, soltei um suspiro pesado. O mundo lá fora parecia grande demais. Ou talvez vazio demais.
N?o olhei para trás. Apenas subi na minha bicicleta e parti rumo para casa. O vento frio batia no meu rosto, mas n?o era o suficiente para aliviar o calor que subia pelo meu corpo. Raiva, vergonha e algo mais do qual eu n?o queria nomear.
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Meus olhos estavam fixos na parede de musgo à minha frente. Alta, ladrilhada com tijolos firmes, inabalável pelo tempo — diferente de mim. Apoiei a testa ali, buscando algo sólido enquanto minha mente se debatia. Meu peito subia e descia rápido.
— Senhor, você está bem? Parece que sua respira??o se alterou de repente. — uma voz doce rompeu meu isolamento.
Virei o rosto. E vi Hera, a cavaleira real da família Valdrius, me observava. Sua armadura prateada brilhava ao sol, adornada com detalhes vermelhos do meu cl?. Sempre fora a única capaz de me arrancar da solid?o sufocante da mans?o.
— N?o foi nada, Hera — forcei um sorriso. — Só preciso de ar.
Ela cruzou os bra?os.
— Mas é sério, herdeiro Levi... — seu tom carregava incredulidade. — Ainda acho estranho que alguém como o senhor seja uma porcaria em magia.
As palavras dela perfuraram sem cerim?nia. Hera sempre foi assim, direta, mesmo sem perceber quando mexia em feridas abertas. Talvez fosse isso que me fazia gostar tanto dela.
— Realmente... muito estranho — murmurei, mais para mim do que para ela.
Hera franziu a testa, os punhos cerrados. Seu rosto era quase infantil, mas sua postura exalava determina??o.
— Poxa~, eles nem refizeram o teste? Isso é um absurdo!? Esse colégio é um dos piores que já existiu!
Ri, mas o som saiu seco.
— Para falar a verdade, eu já sentia isso...
— Como assim senhor Levi? — ela estreitou os olhos.
Suspirei, voltando o olhar para a parede.
— é um segredo da família Valdrius, mas vou te contar mesmo assim. — Pausa. — Dizem que os magos despertam aos doze anos de idade, mas os Valdrianos fogem dessa regra. Nossa magia se manifesta muito antes. Eu já deveria ter conseguido elevar minha mana há anos. Mas fui bobo, Hera. Me agarrei à esperan?a de estar errado.
Ela ficou em silêncio, os olhos vermelhos — quase um reflexo da cor do meu cl? — carregando uma mistura de empatia e raiva.
— Isso n?o importa! Seu sangue n?o deveria te fazer sofrer assim. Isso simplesmente n?o faz sentido! — sua voz quase falhou. — Você é o herdeiro do cl?. Como pode n?o ter afinidade com magia? Isso é...
Ela parou, mas o peso do que n?o disse pairava entre nós.
— é... eu também queria acreditar nisso — murmurei, fixando os olhos nos tijolos como se fossem meu único ponto seguro. — Mas n?o tem como fugir da realidade...
Hera desviou o olhar, desanimada. Sua raiva desmoronou em uma tristeza silenciosa.
— Olha, eu t? bem! é serio. — forcei um sorriso, tentando disfar?ar o nó na garganta. — Logo isso vai passar... que logo, logo, eu estarei revigorado novamente para partir em uma nova aventura.
Dei um passo à frente, mas parei diante da parede de musgo, como se fosse um portal para um destino que eu ainda temia.
Hera permaneceu quieta, mas seu olhar carregava uma preocupa??o genuína. Ent?o, sua voz veio suave, mas séria:
— Mas como vai ser daqui para frente, senhor Levi? Eu temo por sua vida... temo por seu futuro... temo que você possa n?o ter um final...
Respirei fundo. O peso daquelas palavras me atingiam com uma for?a admirável. Ela se importava. E isso significava mais do que ela podia imaginar.
— Apesar de tudo, eu n?o sou fraco! — Um sorriso bem for?ado apareceu em meu rosto, tentando sumir com aquela melancolia ao meu redor. — ainda que sem minha magia herdada da minha família, sem a ajuda do meu pai para com meu futuro ou a confian?a dos meus irm?os nas minhas conquistas... — Dei um passo à frente, me colocando de forma mais ereta, tentando parecer confiante. — Mesmo que eu caísse no fim de um po?o sem fundo, eu ainda me ergueria... sabe por quê?
Ela hesitou, balan?ando a cabe?a lentamente.
— Eh... N?o.
Meu cora??o acelerou. Olhei para ela, firme.
— Porque, apesar de tudo, eu sou Levi Valdrius. E os Valdrius n?o sabem desistir.
Um sorriso tímido, mas sincero, surgiu.
A express?o de Hera suavizou. Ela ainda n?o entendia completamente o que eu enfrentava, mas sabia de uma coisa: eu n?o cairia t?o facilmente.
— Espero que esteja certo, Levi... espero mesmo — murmurou.
E eu sabia que estava.
— Aperta Ianua.
A parede tremeu. O musgo caiu em fragmentos enquanto ela se abria devagar. Ent?o, a vis?o surgiu:
Diante de mim, um mar escarlate se estendia sem fim — rosas vermelhas cobrindo o gramado como se fossem o próprio sangue da terra. As colinas suaves abra?avam o horizonte, erguidas como sentinelas que tocavam o céu dourado pelo sol. E no cora??o desse quadro imortal, o Palácio da família Valdrius erguia-se, imponente e eterno, sua presen?a gravada na própria história.
A trilha que levava até seus port?es era um caminho de honra e heran?a, ladeado por flores que floresciam em devo??o silenciosa. No alto, onde o vento sussurrava segredos antigos, a bandeira do cl? tremulava com orgulho inabalável. Seus detalhes dourados entrela?avam-se em círculos perfeitos — símbolos de uma linhagem que jamais seria esquecida.
Era mais do que um lar. Era um trono esculpido pelo tempo, um juramento costurado no destino. E um dia... aquele símbolo voltaria a se erguer com um novo significado.
— Finalmente em casa... — murmurei, tentando ignorar o peso nos ombros. — Mal posso esperar para ver meu pai...
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Quando entrei no escritório do patriarca, algo estava errado. O ambiente, normalmente majestoso, agora parecia opressor. Todos os meus irm?os estavam enfileirados nas laterais, como soldados aguardando ordens. Meu pai e minha m?e estavam sentados à frente, no centro, seus olhares n?o carregavam o acolhimento que eu esperava. Havia raiva neles. Muita raiva.
Meu pai era um homem robusto, com cabelos grisalhos que emoldurava um rosto marcado pelo tempo em que o mundo estava presente. A minha m?e ao seu lado, era uma bela mulher com uma cortesia deslumbrante, seus cabelos negros e olhos afiados eram um detalhe crucial na sua beleza. Mas contrastando com sua raiva, a beleza era contrária à situa??o atual.
O silêncio era perturbador, mas n?o por muito tempo.
— Você... ousou manchar o "Sangue Valdriano". — A voz do meu pai, ou melhor, do patriarca, ecoou pelo ambiente com uma frieza cortante. — E, como puni??o, devemos decidir o que fazer com você.
Meu peito apertou.
—Mas pai...
— N?O ME CHAME DE PAI! — ele rugiu, levantando-se da cadeira com uma aura avassaladora. — Eu sou o patriarca desta casa! Me chame pelo título que me é devido. Agora, anuncio: haverá uma vota??o!
— Vota??o!
— Vota??o!
— Vota??o!
Os gritos explodiram de todos os lados, como se eles tivessem aguardado por esse momento. Meus irm?os pareciam diferentes, como feras que finalmente encontraram uma presa. Alguns riam de mim, outros me olhavam com desdém, e havia os que apenas esperavam, mas com um brilho cruel nos olhos.
— A vota??o come?ou, pe?o a todos vocês que sejam pacientes com suas escolhas. — come?ou o patriarca, sua voz imponente calando todos os outros. — Vocês querem que seu irm?o mais novo seja "executado"?
— Isso, acaba com ele! — um dos meus irm?os berrou.
— Por que deixar um sangue impuro como ele aqui com a gente? — gritou outro.
— Ele merece muito mais do que apenas uma morte!
Era um caos. Vozes exaltadas, risos insanos. Eles estavam sedentos, consumidos por algo que eu n?o conseguia compreender.
— Chega.
A voz do patriarca cortou o ar como uma lamina afiada. A tens?o foi imediata, sufocante. Uma aura opressora se espalhou pelo sal?o, e no instante seguinte, o silêncio reinou absoluto. Era como se ele tivesse o poder de interromper n?o apenas as palavras, mas os próprios batimentos cardíacos daqueles que ousavam desafiá-lo.
— Agora... vocês est?o assustando seu irm?o mais novo, que ainda n?o compreendeu a situa??o em que se encontra. Permitam-me esclarecer.
Ele se virou para mim, e seus olhos ardiam como brasas vivas, perfurando qualquer resquício de dúvida. O sal?o inteiro aguardava, expectante. O único som que restava era minha própria respira??o, lenta e pesada.
— Você é uma incógnita dentro de nossa linhagem. O primeiro, em séculos, a despertar uma afinidade mágica t?o grotesca... t?o dissonante. N?o lhe parece errado?
— S-Sim! — minha voz falhou por um momento, mas consegui responder, mesmo sabendo que aquilo n?o mudaria nada. Ele n?o esperava outra coisa. O peso das palavras dele me sufocava.
— Se compreendes isso, ent?o também compreendes por que somos implacáveis com tua existência. — Ele fez uma pausa, seu olhar afiado como uma lamina atravessando minha alma. — N?o podemos permitir que um filho ilegítimo e indigno continue a manchar o nome da família Valdrius; uma impureza que corrompe a perfei??o desta grandiosa obra. Nenhum nome, nenhum título e nenhuma for?a externa te concedem o direito de permanecer onde n?o pertences. Sendo assim, n?o nos resta alternativa sen?o erradicar essa falha.
A sala ficou em silêncio por um momento, mas a tens?o ainda era imensa. Eu podia sentir os olhares de desprezo e julgamento se fixando sobre mim, como laminas afiadas.
— Com isso dito, voltamos à vota??o. Descendentes Valdrius! Seu patriarca e sua monarca pergunta novamente à vocês: preferem que seu irm?o, Levi Valdrius, seja executado ou... Exilado?
O silêncio era profundo, a escolha devastadora. Eu sabia que n?o havia mais espa?o para discuss?o. A vota??o que se seguia era uma senten?a, e eu era apenas uma vítima em um jogo onde ninguém parecia se importar com quem eu realmente era.
— Exilado~? — um irm?o zombou. — Um verme que n?o pode usar magia, sendo deixado pela família nesse mundo, isso é: o mesmo que o executar.
— é verdade, deixar os plebeus brincarem com ele será muito mais divertido! — disse outro, rindo.
Eu n?o conseguia respirar. Era como se o ar tivesse abandonado os meus pulm?es. Meu peito parecia prestes a explodir, e minhas m?os tremiam de forma incontrolável. Meu corpo inteiro estava em um estado de colapso. Tudo ao meu redor era opressor, esmagador. A fúria nos olhos dos meus irm?os, o julgamento silencioso - e ao mesmo tempo ensurdecedor - dos meus pais, a frieza implacável do patriarca... Era demais. Eu queria gritar, mas minha voz estava presa, sufocada. A press?o daquele momento estava me despeda?ando.
— Ent?o eu declaro — a voz do patriarca, cortante como lamina, ecoou pela sala, cada palavra pesada com uma autoridade que só ele possuía. — Levi Valdrius, diante dos olhos de seus irm?os e sob o peso de nossa linhagem, eu te despojo de teu nome, de tua heran?a e de teu direito. N?o és mais meu filho, nem és mais um Valdrius. Que os ventos te carreguem para longe deste reino, pois daqui em diante, tua sombra n?o manchará mais estas terras.
Eu mal consigo lembrar os detalhes daquele dia. Tudo se transformou em sombras enevoadas em minha mente, partes de um passado distante que eu daria de tudo para esquecer. Só o que restou foi a lembran?a de um céu cinzento, uma chuva incessante, e eu, sozinho, com uma mala marrom em m?os.
Dentro dela, havia pouco: um cajado pequeno que canalizava magia — perfeito para novatos —, mas que mais parecia um peso inútil em minhas m?os. Também havia alguns livros de receitas. Nada poderia ser mais simbólico da minha derrota. Naquele dia, eu perdi tudo. Meu lar, minha honra, minha identidade. Tudo se desfez como areia ao vento.
Passei a vaguejar pelas cidades filiadas a outros cl?s, tentando sobreviver enquanto evitava os territórios do meu próprio sangue. N?o era difícil passar despercebido; nos primeiros meses ninguém sabia que o filho mais novo de Virgil Valdrius, o herdeiro de um dos cl?s mais poderosos, havia sido exilado. Mas, na verdade, eu n?o tinha para onde ir. Mesmo nos territórios mais tranquilo de Eustasia, as pessoas me olhavam com nojo: "Impuro", "fracassado", "lixo". E logo, todos souberam da minha queda.
Eu fugi de todos eles, corri o mais rápido que pude, tropecei por cada obstaculo, mais do que consigo imaginar, mas enfim encontrei um lugar onde poderia por um tempo, conseguir ficar em paz, nessa vila isolada de tudo. Pude viver como uma pessoa normal, nenhuma liga??o de sangue, nada prometido pelos céus, vivendo sem nenhuma preocupa??o. Até que o dia infeliz me alcan?ou, pelo meu egoismo — eu ainda era fraco. Fui expulso outra vez, sob o olhar de desprezo de todos os moradores. Os infratores chegaram quebrando os móveis do casal de idosos que me ajudaram à me erguer novamente, eles tinham nada haver com isso, e mesmo assim. N?o tive outra escolha, eu fugi outra vez, com as portas da vila se fechando atrás de mim. A mesma cena se repetia, o peso caindo sobre meus ombros, o mesmo olhar abatido em meu rosto e o fardo de minha mediocridade aparecendo na minha frente, e fato era, eu tinha que aceitar isso, essa era a verdade, mas ainda assim... t?o frustrante.
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Porém, um ilustre arraiar surpresa espreitou minha indigna??o, apesar do ódio dos alde?es, ainda existia uma exce??o. Duas pessoas — um casal, os dois alde?es gentis que me ajudaram muito durante minha estadia. Eu tinha uma dívida com eles. Eles vieram até mim, trêmulos, com os olhos cheios de tristeza. Eu nunca os tinha visto daquela maneira. Achei que iriam me culpar, me bater — eles tinham todo o direito, eu n?o iria reclamar.
Mas, mais uma vez, o velho casal me estendeu as suas m?os e, com elas, um saco pesado que carregavam consigo. Deram-me o que podiam — um escudo velho e uma espada que já tinha visto dias melhores. O metal estava gasto, o cabo da espada solto, mas eram ferramentas dadas de cora??o.
Eu n?o consegui entender, com minhas m?o tremulas e com os olhos cheios de lágrimas, eu os agradeci, e n?o conseguir conter meu sorriso, eles me retribuíram com um sorriso alegre também, desejando-me boa sorte.
No meio do caminho eu refleti sobre o que aconteceu naquela vila, viver em sociedade novamente era praticamente inviável enquanto a história sobre o filho ilégitmo da fámilia Valdrius rondar este mundo. Portanto, eu decidir que n?o iria mais machucar nínguem, portanto — irei viver isolado.
Na minha viagem, encontrei o lugar perfeito: o topo de uma montanha, coberto por uma floresta densa. Ouvi secretamente dos alde?es da vila próxima que a montanha era cercada por histórias sobre monstros. Quando escutei isso, percebi que seria perfeito. Mas outro sentimento obscuro surgiu em mim. Talvez eu estivesse pensando que, quando fosse lá, pudesse apenas para esperar que tudo acabasse em algum momento, que os monstros saciassem sua fome.
Um sorriso cínico me agarrou.
Eu n?o já n?o via mais motivo para viver.
Ver os outros sofrerem por minha causa... Tudo era t?o sem sentido. Parecia que a vida tinha perdido sua gra?a.
Ent?o me joguei nessa ideia. Subi aquela montanha, trêmulo, mas decidido.
Mas, na escurid?o, pequenos lampejos de luz me mantiveram em movimento.
Sentado sobre um rochedo, ouvi rosnados distantes, que logo se tornaram mais próximos, mais implacáveis. Ent?o, saíram de entre as árvores: uma matilha de lobos de três cabe?as, seus olhos brilhavam como fogo. A fome deles era palpável, e eu sabia que n?o me restava muito tempo antes que fosse tarde demais. Segurei o saco de equipamentos daquele casal gentil e o joguei no ch?o.
Por que me defender?
N?o foi com esse propósito que eu vim aqui.
Minha espada e escudo estavam ali, espalhados, mas era em v?o. Meu corpo tremia. Minha respira??o ficava mais sufocante. Aquelas criaturas eram duas vezes maiores do que eu. Eu n?o tinha qualquer chance.
Os lobos estavam famintos, ágeis. O ataque veio rápido.
Talvez tenha sido instintivo. Coloquei o escudo rapidamente no peito, mas n?o era o que eu queria fazer. Foi meu corpo pedindo para viver.
Só que n?o foi o suficiente para aparar aquele ataque. A besta usou todas as suas cabe?as e se lan?ou contra mim, me empurrando para trás com uma for?a tremenda. O impacto reverberou nos meus ossos. Cambaleei para trás, o escudo quase me derrubando. As feras restantes da matilha come?aram a me cercar. Já tinham planejado tudo.
Com um grito gutural, empurrei o escudo contra as cabe?as da besta e a afastei. Olhei para baixo. Eu estava pisando sobre a espada.
E ent?o pensei:
"Eu posso matar essa criatura, mas... eu n?o vim aqui para isso."
Desde que nasci, fui depreciado pelos meus guardi?es — meus pais. Nunca vi um sorriso em seus rostos quando me observavam. N?o importava o que eu conquistava. Podia correr mais rápido que um veado, acertar dez flechas no mesmo ponto crítico do alvo, ou até mesmo levantar uma imensa pedra de platina. Eles nunca se impressionaram. Nunca me elogiaram.
Eu me sentia um estúpido, tentando impressionar uma plateia que n?o se importava com o piadista. Meu palco, apesar de cheio, parecia vazio.
Mas isso podia mudar.
Eu podia mudar.
Rebati a espada sobre meu pé. Ela girou algumas vezes no ar. Mas, com olhos atentos e um corpo ágil, peguei-a no tempo exato. E ent?o a ergui brutalmente contra a barriga do monstro.
A lamina encontrou resistência, mas ent?o cortou a carne como manteiga. O monstro urrou de dor. Ele caiu.
Mas o que se seguiu foi uma onda de fúria ainda maior.
Os outros lobos avan?aram, e eu sabia que n?o teria o mesmo tempo de rea??o. Com um movimento rápido, desviei com um giro no ar de um dos ataques pela lateral, mas um dos lobos conseguiu rasgar a carne da minha perna com suas garras afiadas. O sangue quente escorreu pelo meu corpo, mas a dor foi ignorada. Eu n?o tinha tempo para ela. Sem perder tempo, com um grito abafado, cortei em diagonal a ponta da espada as gargantas do lobo que me atacou, o impacto me fazendo quase cair de joelhos. Mas a besta também caindo sem vida atrás de mim.
Minhas for?as estavam se esgotando. De alguma forma, percebi que era veneno. Aquelas malditas bestas tinham veneno em suas garras. Bestas demoníacas. Com o escudo pesado demais para continuar segurando, eu o derrubei, me levantei agarrando apenas a lamina com as duas m?os. Mas a luta já n?o dependia de habilidade ou for?a. Seria vencida por pura determina??o. Se eu n?o acabasse com essa última criatura antes que o veneno me consumisse, estaria tudo acabado. Meu orgulho rejeitava essa ideia.
Sem tempo para pesar, a besta avan?ou novamente com belicosidade. Em um último esfor?o, bloqueei um golpe mortal com a espada e empurrei o monstro para trás, ainda com dificuldade. Mas a lamina n?o resistiu. Ela se partiu em peda?os. Restava apenas um fragmento preso à bainha. O lobo restante n?o recuava. Ele era incansávei. Eu estava cansado. E estava desarmado. Meus bra?os tremiam ao segurar a espada quebrada. Meus pés mal se firmavam no ch?o. Mas havia algo dentro de mim, algo que se recusava a ceder. Eu n?o morreria naquela floresta. N?o daquela forma.
O último lobo avan?ou, mandíbula aberta. Recuei, e depois dei um passo à frente. Eu percebi que sempre que a fera avan?ava ela n?o tinha mais como parar. Era agora. Pulei sobre a criatura, cravando a lamina nas costas dela. O monstro urrava de dor, mas n?o caiu. Ent?o continuei. De novo. Os gritos aumentando. De novo. O sangue manava viscidez. De novo. As pupilas da criatura saltavam. De novo.
Até que, finalmente, a besta tombou morta.
Eu caí ao lado dela, o peso do cansa?o me dominando. O veneno estava me consumindo. O escudo e a espada destruídos estavam cobertos de sangue e terra. Mais pesados do que nunca. Eu havia sobrevivido, mas n?o sem um pre?o. As feridas queimavam. Minha respira??o era irregular. Mas, naquele momento, eu sabia que poderia seguir em frente. Minha vontade de viver ainda era maior que qualquer dor.
Corri até aquele vilarejo. Sem ressentimentos. Sem pensar no desprezo que poderiam sentir por mim. Só queria que, só dessa vez, me ajudassem um pouco. Meu corpo sangrava, implorava por ajuda. Eu me sentia t?o fraco. Tanto fisicamente quanto mentalmente. Os alde?es entraram em frenesi. Me ajudaram. Cuidaram de mim. Trataram minhas feridas. O doutor do vilarejo repetia várias vezes que, se eu tivesse chegado um segundo mais tarde, eu já estaria morto.
Seria isso Deus me ajudando?
A dúvida se instalou na minha mente. Mas, mesmo sem nunca ter acreditado em algo assim, talvez... talvez essa tenha sido a única vez em muito tempo que confiei em alguém.
Alguns anos se passaram, e eu já havia me recuperado dos meus ferimentos. Quando parti da vila, os olhares gentis dos alde?es se transformaram em puro ódio. Foi ent?o que entendi de verdade: nunca poderei viver tranquilamente, assim como imaginei.
Voltei à montanha, sentindo que já podia chamá-la de meu lar. Mas algo me incomodava. De tempos em tempos, aventureiros passavam por essa floresta, t?o distante de qualquer reino. Era estranho. O único pensamento que se passava em minha mente era que aquilo era um plano dos alde?es para me eliminarem.
Eles acham que vou morrer t?o facilmente? Est?o sonhando alto.
Mas nunca me encontraram. Minha percep??o e minha agilidade me permitiam sentir quando estavam por perto, e eu simplesmente me escondia. Era tedioso fugir de um bando de inúteis, mas eu n?o tinha escolha. N?o sabia o que poderia acontecer se me encontrassem. Mas essa ansiedade terminou muito antes do que imaginei.
Com o tempo, eles pararam de aparecer, e eu finalmente pude viver em paz. Mas aquela sensa??o... espreitar alguém, observar atentamente seus movimentos... era t?o revigorante.
A fome come?ou a me consumir. Eu poderia viver apenas das frutas daquela floresta, mas depender apenas disso era miserável. Ca?ar era a op??o mais sensata. Mas, mesmo sabendo o que fazer, ainda era difícil.
Uma arma.
Era disso que eu precisava. Foi ent?o que olhei para a lamina quebrada, pensando em usá-la novamente numa presa. Mas, no instante em que a segurei, ela simplesmente se despeda?ou em minhas m?os. A frustra??o me atingiu em cheio, mas n?o aceitei me render t?o facilmente. Eu me ergui. Se n?o tinha uma arma, ent?o eu iria atrás de uma.
Treinei. Me aperfei?oei. Anos se passaram. Construí armas e cacei, sem parar. Finalmente, eu tinha alimento.
Mas como prepará-lo?
Foi quando me lembrei daquele velho livro de receitas. Um dos poucos pertences que me deram quando fui exilado — que gentis da parte deles me darem isso, pensei. Pois agora ele será muito bem usado.
Ao abrir o livro, percebi algo estranho. Apesar das ilustra??es de comida e da estrutura típica de uma receita — modo de preparo, ingredientes, quantidades —, aqueles ingredientes n?o eram normais.
Ent?o me lembrei. Eu já tinha visto aquilo antes.
Alquimia.
No come?o, duvidei. Mas ao observar melhor, percebi que era exatamente isso. Talvez fosse o único peda?o de magia que eu ainda pudesse tocar. Algo que antes desprezava, pois acreditava na magia grandiosa que me fora prometida.
Nos velhos livros, que antes considerava inúteis, encontrei fórmulas e teorias que reacenderam algo dentro de mim. Li cada página com aten??o, experimentando cuidadosamente em fogueiras e caldeir?es improvisados. Pela primeira vez em anos, eu sentia que podia criar algo com minhas próprias m?os, sem depender do nome ou das expectativas sufocantes da minha família.
Ainda assim, o peso do passado era constante. às vezes, à noite, quando o silêncio se tornava ensurdecedor, eu me pegava olhando para o céu, me perguntando o que havia feito de errado. Por que, entre todos os descendentes dos Valdrius, eu nasci sem o dom que era nossa marca? Por que parecia que o universo me havia abandonado?
As respostas nunca vieram. E assim continuei. Um passo de cada vez, tentando encontrar meu lugar em um mundo que me rejeitava. O exílio era solitário, mas, de certa forma, me libertou. N?o havia mais ninguém para me julgar, ninguém para esperar algo de mim. Eu era só... eu. E talvez, só talvez, isso fosse suficiente.
E percebi.
Era isso.
Eu finalmente via um rosto que parecia meu.
Antes, eu me enxergava coberto de imperfei??es, um molde quebrado tentando se passar por algo nobre. Minhas roupas sempre estiveram alinhadas, minha postura impecável, mas nada disso me fazia sentir inteiro. Meu reflexo nas janelas douradas daquela casa era sempre o de um estranho — sem peso, sem verdade. Agora, diante daquele lago escuro e sujo, envolto em trapos e poeira, eu me enxergava pela primeira vez.
Meus olhos, antes apagados, agora tinham profundidade. Minha pele, antes lisa e sem marca alguma, carregava pequenos cortes, manchas, cicatrizes que contavam algo real. Meu corpo, antes ajustado a roupas caras e desconfortáveis, agora vestia a ruína, e mesmo assim, eu me sentia mais completo.
Eu deveria me sentir envergonhado. Eu estava sujo, coberto de sangue seco e terra. Minhas roupas, antes finas e bem ajustadas, estavam rasgadas e fediam a suor e lama. Mas, pela primeira vez, isso n?o importava. Antes, eu buscava perfei??o e só via falha. Agora, coberto de sujeira e feridas, eu via for?a.
Como se, de alguma forma, aquilo que eu sempre temi ter perdido nunca tivesse existido para come?ar.
Ent?o com um sorriso cotente e olhos marejados, eu voltei à floresta, onde as árvores pareciam sussurrar segredos antigos. Cada passo ressoava no ch?o, e a luz da lua filtrava-se, criando sombras dan?antes ao meu redor.
Mas meus passos fora interrompidas quando da escurid?o algo surgiu repentinamente. A floresta parecia viva, e uma intui??o inquietante me dizia que eu n?o estava sozinho. Meu instinto dizia que eu n?o precisava me esconder, ent?o, uma figura alta surgiu da penumbra. Seus olhos brilhavam como lanternas, como se tivesse encontrado aquilo que procurava.
Ele era um homem alto, que apesar de antem?o ter uma presen?a imponente, agora sua postura era mais carismática e descontraída, seu sorriso largo e despreocupado sugeria uma personalidade leve e otimista, talvez até despreocupada com os perigos ao seu redor. Seus cabelos desgrenhados, de um tom escuro, combinavam com sua postura relaxada, enquanto ele se apoiava com um dos bra?os na cabe?a, como se estivesse rindo de algo ou apenas aproveitando o momento.
Suas vestes misturavam tradi??o e praticidade, com um 'hakama' claro amarrado na cintura e um sobretudo escuro, aberto e esvoa?ante, que adiciona um ar dramático ao seu visual. O cachecol vermelho ao redor do pesco?o quebra a sobriedade da roupa. Ele também carregava duas espadas na cintura, o que sugeria que, apesar de seu jeito descontraído, ele era um guerreiro experiente.
— Yao! Me chamo Kael, um simples andarilho sem rumo. — Ele deu um sorriso largo, batendo levemente no cabo da espada que pendia na sua cintura, como se a situa??o fosse apenas mais uma divers?o. — Acho que tropecei em um rosto famoso, hein?
Ele me observou de cima a baixo, um brilho travesso nos olhos, como se estivesse decidindo qual parte de mim seria mais interessante para comentar.
— Hum... deixa eu ver, você estava chorando, n?o estava? Ou estava... cheirando algo mais forte?
— Eu estava chorando, e tem algum problema com isso? — Respondi, tentando n?o parecer incomodado, embora a provoca??o dele come?asse a me irritar.
— Sem problemas, amigo, n?o que isso seja ruim. Se ainda consegue chorar, ent?o é sinal de que é humano. — Ele disse com uma leveza imensa, como se fosse a verdade mais simples do mundo. — Eu me sentiria péssimo se de repente perdesse minhas emo??es e virasse marionete de alguém, n?o acha?
— N?o... Eu nunca seria marionete de ninguém. — Fui direto, sem hesitar.
— Uau, você nem precisou pensar... é desse tipo de gente que eu gosto! — Kael riu de uma forma que soou estranha para meus ouvidos, como se estivesse se divertindo mais com o meu jeito impassível do que com qualquer outra coisa.
"Que cara mais desagradável", pensei, sem conseguir evitar um suspiro interior.
— Ent?o você deve ser o tal ca?ador exilado... Que beleza! — Ele riu, como se achasse gra?a na ironia da situa??o. — Sabe, o vilarejo me contou uma história muito louca sobre um homem que foi envenenado por um lobo de três cabe?as aqui, nessa floresta, mas conseguiu sobreviver com a ajuda do vilarejo. Porém, saiba, você nem sempre terá sorte, amigo. Como diz o ditado, um lobo destemido pode ser forte, mas um dia vai trope?ar sem a sua matilha. Relaxa... sou generoso. Que tal um pouco de companhia?
— O que você quer? — Perguntei, tentando manter a calma, mas o tom de Kael n?o me passava confian?a.
Kael deu um olhar pregui?oso ao redor, como se estivesse absorvendo o ambiente, antes de responder com toda a calma do mundo.
— Ah, ouvi alguns rumores nas aldeias vizinhas. Histórias estranhas sobre essa montanha. — Ele cruzou os bra?os, inclinando a cabe?a levemente. — Aposto que você, vivendo aqui no alto, sabe tanto quanto qualquer um lá embaixo.
— Vá direto ao ponto. N?o tenho o dia todo. — A paciência come?ava a se esgotar.
Kael riu baixinho, balan?ando a cabe?a.
— Sempre t?o sério... Certo, sem mais rodeios. Estou atrás de uma criatura que anda dizimando tudo por aqui. Rápida, forte... Mortal. — O sorriso no canto de sua boca ganhou uma express?o ir?nica. — Mas tem um detalhe que n?o bate.
Franzi o cenho, atento.
— O responsável pela matan?a... — Ele fez uma pausa, como se estivesse gostando de me ver t?o tenso, e ent?o apontou para mim com um dedo. — é a PORRA de um mago!
O vento cortou a encosta da montanha, mas Kael parecia completamente imune ao frio que nos rodeava, se divertindo com o próprio enigma.
— E n?o é qualquer mago. Um Valdrius. Todo mundo sabe que, por causa da maldi??o dos Vanthendeus, a linhagem deles n?o pode ter atributos físicos fortalecidos. — Ele estalou a língua com um ar de incredulidade. — Mas aí vem um mago Valdrius, esmagando monstros com for?a bruta e velocidade absurda? N?o faz sentido.
— O que... o que você disse? — Eu n?o consegui esconder a surpresa.
— Sobre a criatura que está destruindo os monstros dessa montanha? Sério, você é bem lerdo, hein?
— N?o é sobre isso, seu imbecil! Eu estou falando sobre essa... maldi??o dos Vanthendeus. Eu nunca tinha ouvido falar sobre isso.
O choque foi visível no rosto dele.
— Q-queeeeee? Você n?o sabe sobre a maldi??o dos Vanthendeus?!
— N?o, eu n?o sabia. — Respondi, a confus?o no rosto.
— Carambolas, que surpresa. E eu achando que era eu quem estava desinformado. — Ele fez uma pausa, respirando fundo, e parecia que agora ele realmente queria compartilhar algo. — Bem, isso é algo bem intrínseco no seu cl?. — Ele ajeitou a postura, preparando-se para contar a história. — Há muito tempo, os dois maiores cl?s da regi?o eram os Vanthendeus, conhecidos por terem corpos perfeitos para batalhas e esgrima, além de aprenderem desde cedo a se virar sozinhos. E os Valdrius, um cl? altamente poderoso, com magias t?o complexas que pareciam brincadeira de crian?a. Dizem que as crian?as desse cl? já nascem com sua mana despertada, mas ninguém pode afirmar com certeza. — Kael suspirou animado, como se estivesse contando um segredo de valor.
— Continue, eu n?o confio em você. — Respondi, mantendo cautela.
— Que sem gra?a, mas eu vou te conquistar, boy.
— Se você continuar com essas gírias de outros países, eu vou te bater! — A irrita??o me fez quase perder a compostura.
— Opa, opa, foi mal! — Kael tossiu, se recompondo. — Continuando... Os Valdrius e os Vanthendeus lutaram entre si por milênios. Foi o que chamaram de "O Caos Milenar". No final, os Vanthendeus usaram tudo o que tinham para vencer os Valdrius e selaram toda a sua for?a, impedindo qualquer possibilidade de recupera??o. Você consegue imaginar o porquê?
Eu olhei para ele, confuso.
— Eu n?o sei. Meu cl? é de magos. Por que iriam querer enfraquecer a nossa for?a física?
Kael abriu um sorriso satisfeito, levantando o dedo indicador com confian?a.
— Por causa dos magos guerreiros!
— Magos... guerreiros? — A palavra ecoou em minha mente, mas a resposta ainda estava fora de alcance.
Kael inclinou a cabe?a, os olhos brilhando de uma mistura de divers?o e desafio.
— Ent?o... ficou curioso? Que tal uma parceria? Ou, como eu prefiro, uma troca de informa??es?
Apesar de minha vontade de saber mais, algo em meu instinto me dizia para desconfiar dele. Por que eu deveria acreditar em tudo o que esse homem está dizendo? Ele apareceu do nada, sem mais nem menos... Eu n?o poderia ser t?o ingênuo.
— E por que eu me aliaria a você? — Minha voz soou irritada, mas o fundo da minha mente ainda estava focado nas palavras dele. — Vaza daqui.
Kael observou meus olhos com um sorriso travesso.
— Ah, esses olhos... atrevidos. Eu gostei deles.
Suspirei. Eu sabia que ele n?o sairia t?o facilmente. Ent?o eu n?o vi outra escolha a n?o ser me preparar para o combate. A adrenalina subia, eu sabia que meu inimigo n?o era fraco, e ao mesmo tempo eu queria provar que n?o era mais o mesmo. Mas nunca fui realmente treinado para o combate.
Eu pulei sobre seu corpo, tentando derrubá-lo — assim como fazia com as fera das quais lutei nesse lugar — mas tudo o que consegui foi bater de frente com sua resistência intransponível. Meu corpo escorregou sobre o dele como uma onda que se desfaz na rocha. Kael n?o se moveu. Apenas me encarou, como se nada tivesse acontecido.
— Por acaso... você anda pelo caminho diferente?
Eu senti a vergonha queimando minha garganta, mas a raiva crescia. N?o seria essa a minha derrota. Recuei com rapidez, me afastando de sua linha de vis?o. Rondei, buscando a brecha que ele n?o parecia querer me dar.
— Ah, entendi... — Kael sorriu, e esse sorriso cresceu. — Isso é um combate!
Antes que eu pudesse reagir, Kael saltou em um movimento que desafiava qualquer velocidade humana. Ele foi uma sombra cortando o ar, e a lamina surgiu, como um raio prestes a atingir. A surpresa me paralisou por um segundo. Me abaixei apenas por mero reflexo, mas isso foi o que me salvou. O impacto foi surdo. A lamina cortou o tronco da árvore com uma facilidade monstruosa, e a madeira se partiu como se fosse papel, caindo pesadamente ao meu lado.
O sorriso de Kael se manteve intacto, como se ele estivesse apenas se aquecendo.
— Eu n?o sabia que um mago poderia se mover t?o rápido. — Ele observou, e sua express?o se ampliou, uma mistura de fascina??o e desafio. — Agora... me mostre até onde você vai.
— Tch...!
Os ataques come?aram a vir em ondas. Kael n?o dava margem para defesa, era pura agress?o, pura precis?o. Cada lamina sua cortava o espa?o como se a própria morte estivesse moldada na lamina. Eu mal tinha tempo de me defender, muito menos de atacar. Ele se movia como o vento, fluido, impossível de prever.
Eu tentei bloquear, desviar, mas a lamina de Kael n?o se deixava bloquear. Ela cortava tudo. O ar. O solo. A minha energia. Cada movimento meu se tornava mais pesado, mais lento. Ele parecia estar se divertindo, mas sua divers?o era cruel, quase predatória. Eu n?o era mais o ca?ador aqui. Eu era a ca?a.
Olhei para seus olhos, eles pareciam estar facinados com o que via. é claro, afinal na sua vis?o, na minha linhagem eu deveria ser um mago, um mago sem for?a ou agilidade para desviar de seus golpes — era isso que me salvava. Eu precisava virar o jogo ou minha vida podia se encarar naquele momento. Observei tudo ao meu redor, mas ele me cercava, me esmagava contra tudo o que eu podia pensar, onde as chamas consumiam a vegeta??o ao redor. A fogueira. Eu via uma oportunida no meu cal?o, Mesmo que a cada passo meu, o ar se tornava mais denso, pesado. Sabia que tinha uma oportunidade ali de contra-atacar.
Recuo, ofegante, tentando recuperar o f?lego. Mas Kael se aproximava sem pressa, o sorriso constante em seu rosto. Porém, seus olhos... havia algo neles. Uma expectativa. Ele me observava com a precis?o de um ca?ador que já escolheu sua presa.
Repentinamente eu vejo que ele n?o estava mais apenas me atacando com for?a, ele estava me testando. Como se cada movimento seu fosse uma promessa n?o cumprida, cada tentativa de reagir fosse uma falha diante da inevitabilidade de sua for?a.
Por um instante, senti. Talvez... talvez eu pudesse virar o jogo. O calor no ar, o fogo subindo ao céu. Minha for?a, agora mais agu?ada, parecia crescer. A confian?a que antes me faltava come?ou a renascer. Kael n?o era imbatível. Eu sabia disso.
— Agora você entendeu — ele murmurou, sua voz soando como uma senten?a final.
— O que?! — Perguntei, recuando um passo.
— N?o entendeu mesmo que tenha chegado à esse ponto? — Ele parou, focando nos meus olhos — Isso é... você é bem estranho.
— Cala a boca! — Exaltei, come?ando a rondar seu corpo, buscando brechas.
Kael dominava o campo de batalha, mas isso n?o significava que eu estava sem op??es. Eu precisava ser astuto, imprevisível.
Ent?o, uma ideia surgiu. Uma estratégia maluca, mas talvez fosse minha única chance. Eu precisava de uma distra??o, algo para desestabilizá-lo. Enquanto ele me observava, esperando meu próximo movimento, meu olhar percorreu rapidamente o terreno ao redor. árvores caídas, pedras, e a vegeta??o que o fogo ainda n?o havia consumido. A fogueira.
Foi quando eu lembrei, mesmo que eu n?o tivesse afinidade com magia, eu a conhecia muito bem por causa da minha família, por isso, eu a treinei. Apesar de ser impossível me tornar um grande mago com essa baixa afinidade, eu ao menos posso usá-la um pouco, como o destino me atendeu.
Com um rápido movimento, estendi minhas m?os para a fogueira, para o fogo que queimava, e ent?o, ele se ergueu aos poucos. Apesar de ser um minusculo fogo, já era o bastante para angana-lo.
— Uau, ent?o você realmente pode usar magia e ainda se mover desse jeito, dessa forma você pode ser-
Atirando-o em dire??o ao Kael enquanto ele estava destraído com fogo, joguei em sua dire??o um líquido que estava sobre efeito de um feiti?o de calor. Quando o líquido cair fora do recipiente, ele gerará fuma?a, por causa da diferen?a de temperatura. Ebuli??o. Kael desviou o olhar, mesmo que por um milésimo de segundo. Isso foi tudo o que eu precisava.
Eu ataquei, n?o com o golpe final que ele esperava, mas com o fogo, rápido e preciso em dire??o à sua m?o, a lamina. Kael parecia surpreso, mas se manteve firme. Ele tentou bloquear, mas minha inten??o era outra. Aproveitei a abertura que ele deixou, girando rapidamente para atacá-lo por trás, com uma série de golpes rápidos que ele n?o conseguiu antecipar completamente. A surpresa me deu alguma vantagem, mas Kael n?o era um homem fácil de enganar.
Em um movimento brusco, ele conseguiu desviar do meu fogo e dos meus golpes, a lamina cortando o ar com uma precis?o letal. Dissipando toda a fuma?a em volta. Ele sorriu, mas era um sorriso diferente, uma mistura de respeito e desdém.
— Quase, mas n?o o suficiente. — Ele murmurou, e com um movimento quase imperceptível, ele quebrou minha ofensiva com uma série de ataques que me derrubou no ch?o, ofegante e derrotado. Ele se aproximou de mim, seu olhar agora mais sério.
Apesar da falha, Kael parecia impressionado. Eu havia visto uma brecha, algo inesperado na sua abordagem. Mas mesmo assim, ele soube que ainda estava no controle.
— Boa tentativa. Mas você vai precisar de mais que isso para derrotar alguém como eu — ele disse, com um sorriso no rosto.
Eu estava prestes a responder, mas ele continuou, sem me dar tempo de reagir.
— Você tem potencial, mesmo que n?o saiba nem o básico — disse ele, estendendo a m?o para me ajudar a levantar. — Precisa de muito treinamento. N?o estou aqui para ser seu inimigo, mas para saber sua história. Estou bem curioso para saber a verdade por trás de você.
Confuso, olhei para ele, tentando entender suas inten??es. Ele n?o era o vil?o que imaginará, mas sim alguém que via em mim a possibilidade de algo maior. Kael parecia muito fiel, ele me explicou que muitos, "como nós", estavam presos a legados e expectativas, e que a verdadeira liberdade vinha do autoconhecimento e do domínio das habilidades.
— Se você aceitar, posso te treinar — prop?s ele. — Juntos, podemos descobrir o que realmente significa ser livre.
A ideia de ter um mentor, especialmente um que inicialmente considerei um inimigo, era tanto assustadora quanto intrigante. Mas, em vez de recuar, senti uma onda de determina??o. Eu queria descobrir meu potencial, entender o que aconteceu.
Assim, naquele momento de derrota, uma nova alian?a foi formada. O caminho à frente ainda seria repleto de desafios, mas agora eu tinha alguém ao meu lado, disposto a me guiar em uma jornada que prometia n?o apenas for?a, mas também autodescoberta.
Após anos de reclus?o, deixei a montanha. Ao lado de meu mestre, tomei a decis?o mais arriscada da minha vida: partir para o território dos Vanthendeu. Eles foram os responsáveis por arrancar a esgrima do sangue Valdriano, privando-nos da garra destrutiva dos magos. Para os Vanthendeu, for?a e habilidade com a lamina eram tudo. E, apesar da rivalidade histórica entre nossos cl?s, meu mentor acreditava que havia algo valioso a aprender com eles.
Minha família nunca foi incapaz de manejar a espada. Sempre soubemos o suficiente para nos manter à frente, para estudar e superar as técnicas dos Vanthendeu. Mas, agora, eu estava ali sozinho. N?o como herdeiro. N?o como alguém que carregava um nome. Eu era um ninguém, disposto a mergulhar no mundo deles e descobrir se a for?a poderia preencher o vazio deixado pela magia.
Os anos que se seguiram foram de aprendizado implacável. Sob a tutela dos guerreiros do território Vanthendeu e meu mestre ardiloso, minha maestria com a espada cresceu a níveis impressionantes. Eu me tornara um prodígio, um guerreiro capaz de enfrentar até os melhores entre eles. Mas, mesmo dominando a lamina como poucos, ainda havia algo que me atormentava: minha incapacidade de usar magia.
Meu sangue carregava o legado de magos poderosos, mas, por algum motivo, eu era uma exce??o. Essa angústia contínua corroía meu espírito, até que anos depois, ouvi sobre um curandeiro milagroso, um homem cercado por lendas que o conectavam a "Deus". Se havia uma chance de quebrar essa maldi??o, eu a agarraria sem hesitar.
E ent?o, o impossível aconteceu. O curandeiro me recebeu com uma "express?o indecifrável", como se enxergasse algo além de minha compreens?o. Ele tocou minha testa e murmurou palavras que reverberaram dentro de mim como um trov?o distante. No instante seguinte, um calor intenso cresceu em meu peito, me consumindo de dentro para fora.
De volta ao meu alojamento, caí de joelhos, segurando o peito com for?a. Meu cora??o batia como um tambor de guerra, e a dor — Deus, a dor — era sufocante, profunda, mas estranhamente familiar.
E ent?o, como um relampago atravessando minha mente, eu lembrei.
Os livros.
As páginas antigas que eu devorava na biblioteca quando crian?a. Os relatos sobre o despertar da magia. A febre, a press?o, a dor que queimava os ossos como brasas vivas.
Era isso.
Minha magia havia voltado, ou melhor, se libertado de correntes desconhecidas que ora colocadas pelo destino.
Um riso escapou de minha garganta, trêmulo no início, mas logo se transformou em uma risada verdadeira, carregada de euforia e descren?a. Meus olhos ardiam, e eu percebi que lágrimas escorriam por meu rosto. Mas n?o eram de tristeza. Eram de puro êxtase.
Eu me levantei num salto. Meu corpo inteiro pulsava com energia, com algo que n?o sentia desde que me conhecia por gente. Eu precisava testar. Precisava sentir.
E ent?o corri.
A floresta me recebeu com seu silêncio noturno, o ar fresco cortando meu rosto enquanto eu avan?ava sem hesita??o. Eu n?o sabia o que buscava, mas parecia que o próprio mundo queria me dar a resposta.
Os arbustos à frente se agitaram. Um rugido ressoou pela noite.
Um urso vermelho.
Gigantesco, seus olhos selvagens brilharam sob a luz pálida da lua. Ele avan?ou, suas garras rasgando o solo, seu hálito quente e feroz misturando-se ao ar frio.
Mas dessa vez, eu n?o senti medo.
Levantei minha m?o.
As lembran?as voltaram como um trov?o — os livros, os ensinamentos, as descri??es de como canalizar, de como lan?ar. Era tudo t?o nostálgico, t?o certo.
Meu corpo soube antes de mim.
E ent?o-
O fogo nasceu.
Uma labareda vermelha, colossal, viva, explodiu da minha palma. Ela n?o apenas queimava, mas rugia, como se tivesse sua própria alma, sua própria fúria. O ar ao redor tremulou, distorcido pelo calor abrasador. A noite foi pintada de escarlate.
O urso rugiu, mas eu mal o ouvi.
Eu só sentia.
O poder correndo por mim, pulsando, preenchendo cada vazio que antes carregava. A magia que me foi roubada, que me foi negada, agora estava ali. Minha.
Meu corpo tremia, mas n?o de exaust?o.
De felicidade.
De vitória.
Eu sorri. Chorava e sorria ao mesmo tempo.
Eu havia vencido.
Mas ent?o, de repente, meu corpo parou.
N?o era exaust?o. N?o era o cansa?o de alguém que havia ultrapassado seus limites. Era algo pior. Algo absoluto.
O mundo ao meu redor perdeu o som. O ar ficou pesado, como se tivesse sido drenado. E ent?o veio a dor.
Mas dessa vez, n?o era calor. Era fria.
Um frio que n?o se espalhava como gelo, mas como laminas invisíveis rasgando cada nervo do meu corpo. Meus músculos se recusaram a responder. Meu peito afundou. Minha vis?o tremulou, se apagando nas bordas como uma chama prestes a ser extinta.
Eu caí.
O impacto contra o ch?o foi abafado, distante, como se eu já n?o estivesse ali.
Minhas m?os tremiam. Eu tentei estendê-las, agarrar algo, qualquer coisa que me mantivesse aqui.
Foi quando vi.
Uma caveira.
Fria, imóvel. E ent?o ela se mexeu.
A Morte.
Ela estava ali.
N?o como uma vis?o distante ou um delírio causado pela dor, mas presente, sólida e inevitável. Seus olhos vazios me observavam, sem pressa, sem piedade. Como se minha existência já estivesse determinada, como se nunca houvesse outra escolha.
O mundo ao meu redor come?ou a escurecer. As sombras cresceram, me engolindo. Meu cora??o desacelerou, cada batida mais fraca que a anterior.
Foi nesse momento que eu entendi.
Quebrar a maldi??o tinha um pre?o.
Eu n?o estava livre.
Eu ia morrer.
O curandeiro sabia disso. Ele sempre soube.
As lágrimas que antes escorriam de felicidade agora caíam por outro motivo. A alegria que por um instante preencheu meu peito foi arrancada, esmagada por uma tristeza densa, sufocante.
E no meio dessa tristeza, algo mais cresceu.
Raiva.
Furiosa, ardente, injusta.
Eu lutei minha vida inteira. Superei limites, me reergui incontáveis vezes. Mas agora, no instante em que finalmente tinha algo meu, no momento em que me senti completo... tudo seria tirado de mim de novo.
O destino ria da minha existência.
E eu o odiava por isso.
O vazio me envolvia. A dor havia desaparecido, mas eu n?o sentia alívio. Apenas um silêncio sufocante.
Ent?o, algo mudou.
Uma presen?a surgiu. N?o um som, nem uma forma definida de imediato, mas um peso no ambiente, como se o próprio espa?o ao meu redor se dobrasse para acomodá-la. Eu tentei mover os olhos, mas n?o sabia se ainda os tinha. Tudo ao meu redor parecia se curvar, distorcido.
E ent?o, no meio da escurid?o, vi contornos.
Primeiro, uma estrutura massiva, feita de madeira, mas n?o madeira comum. Seu material parecia antigo e vivo ao mesmo tempo, com padr?es que se moviam como se respirassem, como se o próprio tempo fluísse por suas camadas. As bordas eram estreitas e angulosas, com uma geometria impossível, como se pertencesse a um interior sem fim.
Havia luz ali. Linhas azuis pulsavam suavemente em sua superfície, seguindo trilhas imprevisíveis, se apagando e acendendo como estrelas distantes.
Pinturas.
As laterais da estrutura eram cobertas por quadros, cada um retratando cenas que pareciam t?o vivas que, por um momento, acreditei que se moviam. Guerras, coroa??es, despedidas... momentos roubados de outras eras.
No topo, algo se ergueu. Um formato reconhecível, mas deslocado naquele contexto. Um pe?o de xadrez, negro como a noite, e sobre ele, uma coroa desproporcional, reluzente em um brilho melancólico.
A entidade estava sentada.
A poltrona sob ela era descomunal, luxuosa e estufada, como se pertencesse a um rei, mas abandonada pelo tempo. O ser repousava ali, em silêncio, como se me estudasse, sua presen?a pesando sobre mim mais do que qualquer for?a física.
Foi ent?o que a voz ecoou.
— Sua vida foi miserável, Levi Valdrius. Marcada por perdas, traumas e um destino cruel.
O som era profundo, carregado por uma tristeza insondável, como se cada palavra carregasse o peso de eras esquecidas.
— Mas n?o precisa terminar assim.
A entidade moveu-se. N?o um movimento comum, mas um deslocamento sutil, como se as pinturas em sua superfície tremessem por um instante antes de algo emergir delas.
Uma m?o.
Ou pelo menos, algo parecido com uma.
Uma das pinturas distorceu-se, seus tra?os se retorcendo até formarem um bra?o espectral que se projetava em minha dire??o. De sua ponta, linhas roxas come?aram a se estender, vibrando no ar como fios de um tear invisível.
Eu as reconheci.
A maldi??o.
Os fios estavam conectados ao meu peito. Sempre estiveram. Como correntes invisíveis que me mantiveram cativo desde o nascimento.
A entidade agarrou-os.
A pintura de onde seu bra?o emergira tremulou, como se resistisse por um momento, antes de ceder ao toque do ser. Com um único gesto, ele arrancou as linhas de mim.
Uma última palavra ressoou.
— Imediatamente.
A dor cessou. Meu corpo relaxou. A escurid?o me consumiu por completo.
E ent?o...
Silêncio.
Por um momento, eu n?o existia. Nenhum som, nenhuma dor, nenhum pensamento. Apenas o vazio absoluto.
Até que algo mudou.
Meus olhos se abriram.
O mundo ao meu redor era diferente. Meu corpo...
Pequeno. Frágil.
Eu sentia calor, um tecido macio me envolvendo. Havia vozes ao fundo, abafadas, irreconhecíveis. Minha vis?o ainda era turva, mas, à medida que piscava, as formas ao meu redor se tornavam mais nítidas.
Foi quando percebi.
Eu havia renascido.
Como um... bebê.