A inspira??o para esta investiga??o surgiu de forma bastante inesperada. Numa noite de Halloween, a minha filha convenceu-me a mim e à m?e a ir a um evento anual no Pa?o dos Duques, em Guimar?es. Lá, uma trupe transformara o palácio numa casa assombrada, cheia de monstros, fantasmas e sustos. Foi o final do espetáculo, porém, que mais capturou a minha aten??o. Tratava-se da encena??o de um exorcismo supostamente feito a uma duquesa que ali morara.
Quando cheguei a casa, fiz alguma pesquisa e verifiquei que, n?o só aquilo se baseara em factos históricos, como havia rumores de que acontecimentos estranhos continuaram a ocorrer no palácio mesmo após o exorcismo.
Tendo os meus encontros anteriores com bruxas revelado uma clara rela??o entre elas e demónios, n?o pude deixar de ir investigar, na esperan?a de finalmente encontrar as Bruxas da Noite.
Numa noite de semana, em Novembro, disse à minha mulher que ia trabalhar até tarde e dirigi-me a Guimar?es e ao Pa?o dos Duques. Evidentemente, o palácio estava fechado, e n?o havia ninguém por perto. Estacionei e comecei a procurar uma maneira de entrar.
Como seria de esperar, para além dos guardas no seu interior, o local encontrava-se protegido por um sistema de alarme. Um dos meus camaradas do grupo de explora??o urbana de Braga, que se auto intitulava de "o maior dos exploradores urbanos", pois gostava de visitar n?o só edifícios abandonados, mas também alguns em uso e até habitados, ensinara-me algumas maneiras de contornar os alarmes. Só esperava que esse meu parco conhecimento fosse suficiente para ali entrar.
No fim, porém, acabei por n?o ter de o usar. Ao virar a esquina para as traseiras, protegidas de olhares por árvores e vegeta??o, descobri que alguém se adiantara a mim.
Uma mulher, que n?o devia ter mais de trinta anos, já desativara o alarme e esticava-se, agora, até uma pequena janela quase dois metros acima do ch?o. Ao aperceber-me da sua dificuldade, aproximei-me e disse, com um sorriso:
- Precisa de ajuda?
Ela olhou para mim com um misto de surpresa e medo. Era relativamente baixa, com pouco mais de um metro e cinquenta, e magra. Usava óculos de metal negros, e prendia o cabelo num rabo de cavalo.
Durante uns momentos, os seus olhos dardejaram em todas as dire??es. Por fim, ao perceber que eu n?o era um polícia nem guarda, decidiu n?o fugir e perguntou:
- Quem é você?
- Isso pergunto-lhe eu. Quem é você? Porque está a tentar arrombar um monumento nacional? Dê-me uma raz?o para n?o chamar já a polícia.
- Eu até lhe dava uma raz?o, mas depois vai deixar de conseguir dormir sossegado. Há mais aqui do que que pessoas normais podem imaginar.
- Como demónios?
Ela ficou a olhar para mim, surpreendida, durante uns instantes. Isso disse-me que ela sabia do que eu estava a falar e que, provavelmente, encontrava-se ali pela mesma raz?o do que eu.
Ao fim de alguns instantes, ela perguntou:
- Diga-me o que sabe.
Contei-lhe tudo sobre o diário, as minhas explora??es anteriores, as Bruxas da Noite e o que me levara ali.
- Um dia, gostava de ver esse diário - respondeu ela, quando terminei. - Já ouvi falar dessas criaturas a que chama de Bruxas da Noite, mas costumo focar-me em demónios, e elas parecem n?o os usar como as outras bruxas. Pelo que diz, talvez me devesse come?ar a interessar por elas também. é da minha responsabilidade.
- Da tua responsabilidade? Porquê?
- Fa?o parte de uma tradi??o milenar que protege as pessoas dos demónios e seus agentes. Eu e o meu mestre éramos os responsáveis pelo norte de Portugal. - Ela olhou tristemente para o ch?o. - Mas ele faleceu e agora estou sozinha.
- N?o têm ajuda da Organiza??o? - perguntei, pois pareceu-me que tinham objetivos em comum.
- Essa Organiza??o de que fala só apareceu no século passado. Além disso, est?o mais preocupados em esconder a verdade do que a ajudar as pessoas. N?o têm nada a ver connosco. - Após uma curta pausa, continuou. - Se estamos aqui pela mesma raz?o, talvez me pudesse ajudar. Já abri a janela e confirmei que desliguei o alarme corretamente. Agora tenho de come?ar a levar o equipamento para dentro, e sozinha é mais complicado.
Aceitei de imediato e ela levou-me para a frente do monumento e em dire??o à rua próxima. A meio caminho, após umas curtas apresenta??es, lembrei-me de perguntar:
- Como soubeste deste demónio? Também vieste cá no Halloween?
- N?o. Por acaso, nem sabia do evento até teres falado dele. Tenho um pequeno cluster que usa técnicas de data mining para encontrar padr?es nas notícias e em outras bases de dados a que tenho acesso que possam indicar a presen?a de demónios. Descobri que muitos dos que visitaram este palácio estiveram, depois, envolvidos em crimes. é um claro sinal de influência demoníaca.
Continuámos a andar, até que ela parou atrás de uma Ford transit branca do final dos anos 90. Já vira melhores dias, pois, em vários pontos, a tinta tinha dado lugar a ferrugem, e a fechadura da porta traseira já n?o existia e fora substituída por um sistema de fecho e cadeado.
A demonóloga correu uma das portas laterais, revelando um espa?o de carga contendo uma estranha mistura de antigo e moderno. Várias prateleiras de madeira alinhavam as paredes, contendo livros claramente ancestrais, artefactos religiosos das mais variadas religi?es e objetos eletrónicos com os componentes expostos, claramente construídos ou misturados de forma improvisada. No ch?o, estavam pousados alguns artefactos maiores, como um tapete com uma mandala, um enorme menorá e o que parecia ser um ou vários computadores ligados a uma bateria.
A demonóloga passou-me duas altas e esguias colunas de som, enquanto ela pegou num monitor e num pequeno tablet que, se os meus escassos conhecimentos de eletrónica n?o me enganam, tinha sido construído a partir de um raspberry pi.
Assim que voltámos para as traseiras do palácio, ajudei-a a subir a janela e a entrar. Depois, passei-lhe todo o equipamento e, por fim, entrei no palácio.
Como já esperava dada a exiguidade e altura da janela, estávamos no interior de um pequeno quarto. De momento, encontrava-se vazio, mas, em tempos, devia ter sido usado como arrecada??o, pois n?o havia espa?o para nada mais.
Cautelosamente, Susana, a demonóloga, encostou o ouvido à única porta, certificando-se de que n?o havia guardas do outro lado. Assim que ficou satisfeita, abriu-a.
A enorme sala com que ent?o nos deparámos era-me familiar. Fora ali que, durante o espetáculo de Halloween, se encontrara a condessa possuída a sua cama e onde um padre procedera ao exorcismo.
Assim que lhe contei isto, a demonóloga come?ou a inspecionar cada centímetro da divis?o, usando o tablet e um instrumento que tirou de uma das bolsas que levava à cintura. Foi um processo demorado, durante o qual me mantive nervosamente vigilante para n?o sermos descobertos. Assim que terminou, ela abanou a cabe?a negativamente e decidimos prosseguir.
Gra?as à minha última visita, eu sabia que a única outra porta dava para o pátio central, onde seríamos facilmente vistos pelos guardas, pelo que decidimos subir ao andar superior.
Através de umas escadas exíguas com dois lances, chegámos a um corredor com algumas portas do lado direito e uma divis?o ao fundo. O primeiro quarto estava cheio de armaduras montadas, enquanto que os seguintes albergavam exposi??es de outros artefactos mediavalescos, como livros, mobiliário e estatuetas. A demonóloga inspecionou cada um deles, mas, mais uma vez, n?o encontrou nada.
O mesmo n?o aconteceu, porém, na divis?o ao fundo do corredor. Mal entrámos, LED acederam-se no instrumento eletrónico da minha companheira.
- Assim está melhor - disse ela.
Encontrávamo-nos num quarto vazio, com uma lareira embutida numa das paredes. Seria, possivelmente, o verdadeiro quarto da condessa.
A demonóloga seguiu o rasto do demónio até uma segunda porta.
Sempre atrás das indica??es do instrumento improvisado, atravessámos quartos, vestíbulos, corredores e até uma enorme sala de jantar. Por fim, quando chegámos à capela do palácio, a demonóloga disse, apontando com o queixo para os LED todos acesos da máquina na sua m?o e para um gráfico no ecr? do tablet:
- Está aqui. Vamos instalar as colunas.
- O guarda n?o vai ouvir quando as ligar-mos? - perguntei.
- é quase certo, mas n?o temos escolha. Temos de expulsar este demónio daqui.
Posicionámos as colunas entre os bancos compridos da capela, viradas para o altar. Devido a uma adapta??o da demonóloga, eram alimentadas por baterias, pelo que bastou um pressionar no tablet dela para que uma cacofonia de vozes e línguas come?asse a soar.
- é uma mistura de várias preces crist?s, mu?ulmanas, judaicas, hindus e taoistas usadas para expulsar demónios - explicou a demonóloga.
Durante longos momentos ali ficámos, esperando que o demónio fosse expulso antes que um dos guardas nos ouvisse.
Apesar do meu nervosismo, n?o consegui deixar de admirar a capela. O espetáculo de Halloween n?o passara por ela, pelo que nunca a tinha visitado. Traves de madeira envernizadas seguravam o telhado, e enormes vitrais preenchiam quase a totalidade da parede atrás do pequeno altar. Porém, o que mais me impressionou foram os dois palanques laterais, já que o seu aspeto marcadamente medieval me fazia viajar no tempo.
De súbito, estes come?aram a estremecer, assim como o altar e os bancos à minha volta. Segundos depois, do ch?o, emergiu uma criatura quase do meu tamanho com pele vermelha, dois chifres, e nariz e queixo afiado.
Quase ao mesmo tempo, a porta atrás de nós abriu-se, dando entrada a um seguran?a de lanterna em punho. A vis?o da criatura, porém, ou a combina??o desta com a cacofonia emitida pelas colunas foram demasiado para ele, e o homem desmaiou para cima da última fileira de bancos.
Ao contrário de mim, Susana n?o prestara qualquer aten??o ao guarda e avan?ava em dire??o ao demónio com o ecr? do tablet virado para ele. De relance, vi várias imagens a passar: símbolos religiosos variados, excertos de textos sagrados, imagens de santos e deuses. A criatura estacou e come?ou a gritar.
Lentamente, a demonóloga deslocou-se, tentando colocar o tablet entre o demónio e a porta, ao mesmo tempo que tirava algo da mochila que levava às costas. Contudo, antes que o conseguisse, a criatura emitiu um temível rugido e saltou sobre os bancos quase até à porta. Instintivamente, tentei barrar-lhe a passagem, mas ele atirou-me ao ch?o como se nada fosse e saiu.
- Ele é mais forte do que estava à espera disse a demonóloga, ajudando-me a levantar. - Vamos.
Corremos para fora da capela e descemos as escadas até ao claustro do palácio e, de lá, seguimos o demónio para o exterior. Pelo caminho, passámos por diversos guardas, mas estes, atónitos com a vis?o do demónio ou com a nossa presen?a ali, nem reagiram.
Perseguimos a criatura pela colina em cujo topo se erguia o Castelo de Guimar?es. No entanto, a meio caminho, junto a uma pequena capela ali construída, Susana agarrou-me por um bra?o.
- Espera. Este demónio é muito forte. Normalmente, n?o conseguem escapar daquela maneira. Vou buscar umas coisas para lhe fazer uma emboscada e encurralá-lo nesta capela. Leva o meu tablet, vai atrás dele e tenta empurrá-lo para aqui.
Antes de eu poder responder, ela meteu o tablet nas minhas m?os e virou costas. No ecr?, ainda passavam todo o tipo de imagens religiosas.
Respirando fundo, comecei a correr pela estrada de terra batida que levava ao topo da colina e às ruínas do castelo, onde o demónio entrara.
Sendo a fortaleza mais famosa de Portugal, já a havia visitado mais do que uma vez, pelo que a conhecia bem e podia concentrar-me em encontrar a criatura. A torre de menagem, que fora restaurada, era o único edifício que se encontrava em pé, mas estava fechada, pelo que n?o havia muitos sítios onde o demónio se podia esconder. Isto, se n?o tivesse nenhum truque que eu desconhecesse, claro.
Tentando segurar, ao mesmo tempo, a minha lanterna de bolso e o tablet à minha frente, comecei a procurar em todos os recantos, desde atrás de escombros até às lareiras e às chaminés quebradas que delas partiam. N?o demorei muito a ver um vulto passar ao meu lado. Quando apontei a luz para lá, porém, n?o encontrei nada. Podia ter sido apenas um gato, mas, por alguma raz?o, pressenti que era algo mais, pelo que o persegui.
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Finalmente, quando cheguei a uma esquina sem saída, avistei o demónio e estendi o tablet na sua dire??o. Como eu bloqueava a única rota de fuga, uma estreita passagem entre a muralha e a torre de menagem, a criatura, tentou, em desespero, usar as garras para trepar a muralha. Porém, ao ver que n?o conseguia, carregou contra mim, gritando com um misto de dor e ódio. Mais uma vez, fui incapaz de o parar, e ele passou por mim, atirando-me ao ch?o. Felizmente, recuperei depressa e persegui-o.
Correndo o mais depressa que conseguia, tentei manter-me colado a ele e, com o tablet, conduzi-lo para onde Susana o esperava. Apesar de ele se ter desviado uma ou duas vezes do caminho mais direto, lá o consegui levar até à pequena capela.
Junto à porta desta, encontrava-se a demonóloga, que segurava um outro tablet e, entretanto, havia construído uma passagem delimitada com colunas áudio emitindo a sua mistura de canticos e preces e um monitor enorme que conduzia para o interior.
Percebendo a inten??o, tentei conduzir o demónio para a armadilha. Este ainda tentou escapar, mas, com a ajuda da demonóloga e do seu segundo tablet, consegui levá-lo para a passagem e para o interior da capela.
Mal a criatura passou a porta, Susana selou-a com o enorme monitor onde passavam imagens similares às do tablet. Depois, ativou as colunas que colocara no interior do edifício sagrado. O demónio come?ou a gritar. Primeiro, atirou-se contra as paredes, como se quisesse atravessá-las, depois, investiu na dire??o da porta.
Atrás do ecr?, a demonóloga tirou da mochila um curioso objeto que parecia ser uma espingarda de água, como as usadas pelos miúdos, mas pintada com tinta prateada e coberta com símbolos sagrados. Assim que o ser ficou ao alcance, ela disparou a arma. Vários jatos de líquidos voaram na dire??o do demónio.
Mal foi atingido, este come?ou a gritar ainda mais violentamente. Susana, porém, continuou a disparar. Notei, ent?o, que a criatura come?ava a derreter, como se tivesse sido atingida por um ácido. Aos poucos, desapareceu, até que tudo o que restava dela era um po?a avermelhada no ch?o, a maior parte da qual se infiltrou pelas frinchas entre as lajes funerárias que cobriam o ch?o da capela.
- O que tens nessa arma? - perguntei, surpreendido e curioso.
- água benta, óleo ungido, água de rios sagrados, água do po?o de Zamzam, coisas desse género - explicou ela. - Agora é melhor sairmos daqui antes que os guardas do palácio recuperem e venham atrás de nós.
Assim fizemos. Ajudei-a a levar o material para a carrinha e voltei para o meu carro, mas n?o antes de ela me dar o seu contacto. Esta investiga??o podia n?o me ter dado novas informa??es sobre as Bruxas da Noite,mas trouxe-me um novo aliado na minha miss?o de as encontrar e parar.
A inspira??o para esta investiga??o surgiu de forma bastante inesperada. Numa noite de Halloween, a minha filha convenceu-me a mim e à m?e a ir a um evento anual no Pa?o dos Duques, em Guimar?es. Lá, uma trupe transformara o palácio numa casa assombrada, cheia de monstros, fantasmas e sustos. Foi o final do espetáculo, porém, que mais capturou a minha aten??o. Tratava-se da encena??o de um exorcismo supostamente feito a uma duquesa que ali morara.
Quando cheguei a casa, fiz alguma pesquisa e verifiquei que, n?o só aquilo se baseara em factos históricos, como havia rumores de que acontecimentos estranhos continuaram a ocorrer no palácio mesmo após o exorcismo.
Tendo os meus encontros anteriores com bruxas revelado uma clara rela??o entre elas e demónios, n?o pude deixar de ir investigar, na esperan?a de finalmente encontrar as Bruxas da Noite.
Numa noite de semana, em Novembro, disse à minha mulher que ia trabalhar até tarde e dirigi-me a Guimar?es e ao Pa?o dos Duques. Evidentemente, o palácio estava fechado, e n?o havia ninguém por perto. Estacionei e comecei a procurar uma maneira de entrar.
Como seria de esperar, para além dos guardas no seu interior, o local encontrava-se protegido por um sistema de alarme. Um dos meus camaradas do grupo de explora??o urbana de Braga, que se auto intitulava de "o maior dos exploradores urbanos", pois gostava de visitar n?o só edifícios abandonados, mas também alguns em uso e até habitados, ensinara-me algumas maneiras de contornar os alarmes. Só esperava que esse meu parco conhecimento fosse suficiente para ali entrar.
No fim, porém, acabei por n?o ter de o usar. Ao virar a esquina para as traseiras, protegidas de olhares por árvores e vegeta??o, descobri que alguém se adiantara a mim.
Uma mulher, que n?o devia ter mais de trinta anos, já desativara o alarme e esticava-se, agora, até uma pequena janela quase dois metros acima do ch?o. Ao aperceber-me da sua dificuldade, aproximei-me e disse, com um sorriso:
- Precisa de ajuda?
Ela olhou para mim com um misto de surpresa e medo. Era relativamente baixa, com pouco mais de um metro e cinquenta, e magra. Usava óculos de metal negros, e prendia o cabelo num rabo de cavalo.
Durante uns momentos, os seus olhos dardejaram em todas as dire??es. Por fim, ao perceber que eu n?o era um polícia nem guarda, decidiu n?o fugir e perguntou:
- Quem é você?
- Isso pergunto-lhe eu. Quem é você? Porque está a tentar arrombar um monumento nacional? Dê-me uma raz?o para n?o chamar já a polícia.
- Eu até lhe dava uma raz?o, mas depois vai deixar de conseguir dormir sossegado. Há mais aqui do que que pessoas normais podem imaginar.
- Como demónios?
Ela ficou a olhar para mim, surpreendida, durante uns instantes. Isso disse-me que ela sabia do que eu estava a falar e que, provavelmente, encontrava-se ali pela mesma raz?o do que eu.
Ao fim de alguns instantes, ela perguntou:
- Diga-me o que sabe.
Contei-lhe tudo sobre o diário, as minhas explora??es anteriores, as Bruxas da Noite e o que me levara ali.
- Um dia, gostava de ver esse diário - respondeu ela, quando terminei. - Já ouvi falar dessas criaturas a que chama de Bruxas da Noite, mas costumo focar-me em demónios, e elas parecem n?o os usar como as outras bruxas. Pelo que diz, talvez me devesse come?ar a interessar por elas também. é da minha responsabilidade.
- Da tua responsabilidade? Porquê?
- Fa?o parte de uma tradi??o milenar que protege as pessoas dos demónios e seus agentes. Eu e o meu mestre éramos os responsáveis pelo norte de Portugal. - Ela olhou tristemente para o ch?o. - Mas ele faleceu e agora estou sozinha.
- N?o têm ajuda da Organiza??o? - perguntei, pois pareceu-me que tinham objetivos em comum.
- Essa Organiza??o de que fala só apareceu no século passado. Além disso, est?o mais preocupados em esconder a verdade do que a ajudar as pessoas. N?o têm nada a ver connosco. - Após uma curta pausa, continuou. - Se estamos aqui pela mesma raz?o, talvez me pudesse ajudar. Já abri a janela e confirmei que desliguei o alarme corretamente. Agora tenho de come?ar a levar o equipamento para dentro, e sozinha é mais complicado.
Aceitei de imediato e ela levou-me para a frente do monumento e em dire??o à rua próxima. A meio caminho, após umas curtas apresenta??es, lembrei-me de perguntar:
- Como soubeste deste demónio? Também vieste cá no Halloween?
- N?o. Por acaso, nem sabia do evento até teres falado dele. Tenho um pequeno cluster que usa técnicas de data mining para encontrar padr?es nas notícias e em outras bases de dados a que tenho acesso que possam indicar a presen?a de demónios. Descobri que muitos dos que visitaram este palácio estiveram, depois, envolvidos em crimes. é um claro sinal de influência demoníaca.
Continuámos a andar, até que ela parou atrás de uma Ford transit branca do final dos anos 90. Já vira melhores dias, pois, em vários pontos, a tinta tinha dado lugar a ferrugem, e a fechadura da porta traseira já n?o existia e fora substituída por um sistema de fecho e cadeado.
A demonóloga correu uma das portas laterais, revelando um espa?o de carga contendo uma estranha mistura de antigo e moderno. Várias prateleiras de madeira alinhavam as paredes, contendo livros claramente ancestrais, artefactos religiosos das mais variadas religi?es e objetos eletrónicos com os componentes expostos, claramente construídos ou misturados de forma improvisada. No ch?o, estavam pousados alguns artefactos maiores, como um tapete com uma mandala, um enorme menorá e o que parecia ser um ou vários computadores ligados a uma bateria.
A demonóloga passou-me duas altas e esguias colunas de som, enquanto ela pegou num monitor e num pequeno tablet que, se os meus escassos conhecimentos de eletrónica n?o me enganam, tinha sido construído a partir de um raspberry pi.
Assim que voltámos para as traseiras do palácio, ajudei-a a subir a janela e a entrar. Depois, passei-lhe todo o equipamento e, por fim, entrei no palácio.
Como já esperava dada a exiguidade e altura da janela, estávamos no interior de um pequeno quarto. De momento, encontrava-se vazio, mas, em tempos, devia ter sido usado como arrecada??o, pois n?o havia espa?o para nada mais.
Cautelosamente, Susana, a demonóloga, encostou o ouvido à única porta, certificando-se de que n?o havia guardas do outro lado. Assim que ficou satisfeita, abriu-a.
A enorme sala com que ent?o nos deparámos era-me familiar. Fora ali que, durante o espetáculo de Halloween, se encontrara a condessa possuída a sua cama e onde um padre procedera ao exorcismo.
Assim que lhe contei isto, a demonóloga come?ou a inspecionar cada centímetro da divis?o, usando o tablet e um instrumento que tirou de uma das bolsas que levava à cintura. Foi um processo demorado, durante o qual me mantive nervosamente vigilante para n?o sermos descobertos. Assim que terminou, ela abanou a cabe?a negativamente e decidimos prosseguir.
Gra?as à minha última visita, eu sabia que a única outra porta dava para o pátio central, onde seríamos facilmente vistos pelos guardas, pelo que decidimos subir ao andar superior.
Através de umas escadas exíguas com dois lances, chegámos a um corredor com algumas portas do lado direito e uma divis?o ao fundo. O primeiro quarto estava cheio de armaduras montadas, enquanto que os seguintes albergavam exposi??es de outros artefactos mediavalescos, como livros, mobiliário e estatuetas. A demonóloga inspecionou cada um deles, mas, mais uma vez, n?o encontrou nada.
O mesmo n?o aconteceu, porém, na divis?o ao fundo do corredor. Mal entrámos, LED acederam-se no instrumento eletrónico da minha companheira.
- Assim está melhor - disse ela.
Encontrávamo-nos num quarto vazio, com uma lareira embutida numa das paredes. Seria, possivelmente, o verdadeiro quarto da condessa.
A demonóloga seguiu o rasto do demónio até uma segunda porta.
Sempre atrás das indica??es do instrumento improvisado, atravessámos quartos, vestíbulos, corredores e até uma enorme sala de jantar. Por fim, quando chegámos à capela do palácio, a demonóloga disse, apontando com o queixo para os LED todos acesos da máquina na sua m?o e para um gráfico no ecr? do tablet:
- Está aqui. Vamos instalar as colunas.
- O guarda n?o vai ouvir quando as ligar-mos? - perguntei.
- é quase certo, mas n?o temos escolha. Temos de expulsar este demónio daqui.
Posicionámos as colunas entre os bancos compridos da capela, viradas para o altar. Devido a uma adapta??o da demonóloga, eram alimentadas por baterias, pelo que bastou um pressionar no tablet dela para que uma cacofonia de vozes e línguas come?asse a soar.
- é uma mistura de várias preces crist?s, mu?ulmanas, judaicas, hindus e taoistas usadas para expulsar demónios - explicou a demonóloga.
Durante longos momentos ali ficámos, esperando que o demónio fosse expulso antes que um dos guardas nos ouvisse.
Apesar do meu nervosismo, n?o consegui deixar de admirar a capela. O espetáculo de Halloween n?o passara por ela, pelo que nunca a tinha visitado. Traves de madeira envernizadas seguravam o telhado, e enormes vitrais preenchiam quase a totalidade da parede atrás do pequeno altar. Porém, o que mais me impressionou foram os dois palanques laterais, já que o seu aspeto marcadamente medieval me fazia viajar no tempo.
De súbito, estes come?aram a estremecer, assim como o altar e os bancos à minha volta. Segundos depois, do ch?o, emergiu uma criatura quase do meu tamanho com pele vermelha, dois chifres, e nariz e queixo afiado.
Quase ao mesmo tempo, a porta atrás de nós abriu-se, dando entrada a um seguran?a de lanterna em punho. A vis?o da criatura, porém, ou a combina??o desta com a cacofonia emitida pelas colunas foram demasiado para ele, e o homem desmaiou para cima da última fileira de bancos.
Ao contrário de mim, Susana n?o prestara qualquer aten??o ao guarda e avan?ava em dire??o ao demónio com o ecr? do tablet virado para ele. De relance, vi várias imagens a passar: símbolos religiosos variados, excertos de textos sagrados, imagens de santos e deuses. A criatura estacou e come?ou a gritar.
Lentamente, a demonóloga deslocou-se, tentando colocar o tablet entre o demónio e a porta, ao mesmo tempo que tirava algo da mochila que levava às costas. Contudo, antes que o conseguisse, a criatura emitiu um temível rugido e saltou sobre os bancos quase até à porta. Instintivamente, tentei barrar-lhe a passagem, mas ele atirou-me ao ch?o como se nada fosse e saiu.
- Ele é mais forte do que estava à espera disse a demonóloga, ajudando-me a levantar. - Vamos.
Corremos para fora da capela e descemos as escadas até ao claustro do palácio e, de lá, seguimos o demónio para o exterior. Pelo caminho, passámos por diversos guardas, mas estes, atónitos com a vis?o do demónio ou com a nossa presen?a ali, nem reagiram.
Perseguimos a criatura pela colina em cujo topo se erguia o Castelo de Guimar?es. No entanto, a meio caminho, junto a uma pequena capela ali construída, Susana agarrou-me por um bra?o.
- Espera. Este demónio é muito forte. Normalmente, n?o conseguem escapar daquela maneira. Vou buscar umas coisas para lhe fazer uma emboscada e encurralá-lo nesta capela. Leva o meu tablet, vai atrás dele e tenta empurrá-lo para aqui.
Antes de eu poder responder, ela meteu o tablet nas minhas m?os e virou costas. No ecr?, ainda passavam todo o tipo de imagens religiosas.
Respirando fundo, comecei a correr pela estrada de terra batida que levava ao topo da colina e às ruínas do castelo, onde o demónio entrara.
Sendo a fortaleza mais famosa de Portugal, já a havia visitado mais do que uma vez, pelo que a conhecia bem e podia concentrar-me em encontrar a criatura. A torre de menagem, que fora restaurada, era o único edifício que se encontrava em pé, mas estava fechada, pelo que n?o havia muitos sítios onde o demónio se podia esconder. Isto, se n?o tivesse nenhum truque que eu desconhecesse, claro.
Tentando segurar, ao mesmo tempo, a minha lanterna de bolso e o tablet à minha frente, comecei a procurar em todos os recantos, desde atrás de escombros até às lareiras e às chaminés quebradas que delas partiam.
N?o demorei muito a ver um vulto passar ao meu lado. Quando apontei a luz para lá, porém, n?o encontrei nada. Podia ter sido apenas um gato, mas, por alguma raz?o, pressenti que era algo mais, pelo que o persegui.
Finalmente, quando cheguei a uma esquina sem saída, avistei o demónio e estendi o tablet na sua dire??o. Como eu bloqueava a única rota de fuga, uma estreita passagem entre a muralha e a torre de menagem, a criatura, tentou, em desespero, usar as garras para trepar a muralha. Porém, ao ver que n?o conseguia, carregou contra mim, gritando com um misto de dor e ódio. Mais uma vez, fui incapaz de o parar, e ele passou por mim, atirando-me ao ch?o. Felizmente, recuperei depressa e persegui-o.
Correndo o mais depressa que conseguia, tentei manter-me colado a ele e, com o tablet, conduzi-lo para onde Susana o esperava. Apesar de ele se ter desviado uma ou duas vezes do caminho mais direto, lá o consegui levar até à pequena capela.
Junto à porta desta, encontrava-se a demonóloga, que segurava um outro tablet e, entretanto, havia construído uma passagem delimitada com colunas áudio emitindo a sua mistura de canticos e preces e um monitor enorme que conduzia para o interior.
Percebendo a inten??o, tentei conduzir o demónio para a armadilha. Este ainda tentou escapar, mas, com a ajuda da demonóloga e do seu segundo tablet, consegui levá-lo para a passagem e para o interior da capela.
Mal a criatura passou a porta, Susana selou-a com o enorme monitor onde passavam imagens similares às do tablet. Depois, ativou as colunas que colocara no interior do edifício sagrado. O demónio come?ou a gritar. Primeiro, atirou-se contra as paredes, como se quisesse atravessá-las, depois, investiu na dire??o da porta.
Atrás do ecr?, a demonóloga tirou da mochila um curioso objeto que parecia ser uma espingarda de água, como as usadas pelos miúdos, mas pintada com tinta prateada e coberta com símbolos sagrados. Assim que o ser ficou ao alcance, ela disparou a arma. Vários jatos de líquidos voaram na dire??o do demónio.
Mal foi atingido, este come?ou a gritar ainda mais violentamente. Susana, porém, continuou a disparar. Notei, ent?o, que a criatura come?ava a derreter, como se tivesse sido atingida por um ácido. Aos poucos, desapareceu, até que tudo o que restava dela era um po?a avermelhada no ch?o, a maior parte da qual se infiltrou pelas frinchas entre as lajes funerárias que cobriam o ch?o da capela.
- O que tens nessa arma? - perguntei, surpreendido e curioso.
- água benta, óleo ungido, água de rios sagrados, água do po?o de Zamzam, coisas desse género - explicou ela. - Agora é melhor sairmos daqui antes que os guardas do palácio recuperem e venham atrás de nós.
Assim fizemos. Ajudei-a a levar o material para a carrinha e voltei para o meu carro, mas n?o antes de ela me dar o seu contacto. Esta investiga??o podia n?o me ter dado novas informa??es sobre as Bruxas da Noite,mas trouxe-me um novo aliado na minha miss?o de as encontrar e parar.