Há um ódio no meu cora??o. Me dói ver que foi conspurcado, manchado por tudo que vi. N?o era isso que eu queria me tornar, mas é isso que sou agora.
1
Se aquela era uma amostra da guerra que iriam travar sobre as montanhas, soube que teriam que se esfor?ar muito mais. Em poucos dias haviam entrado em contato com alguns dos batalh?es que procuravam cercar Danbara, e os riscos foram enormes. O desgaste de lutar contra uma máquina de guerra como aquela era muito grande. Por várias vezes temeu pelos seus companheiros. Mas, finalmente, conseguiram identificar os comandantes, e talvez pudessem colocar um ponto final na batalha. Se conseguissem matá-los, era muito provável que todo o esfor?o thianahu se descoordenasse e os tornassem presas fáceis.
Porém, a realidade é bem mais dura que a que a esperan?a pinta. O exército thianahu era muito bem treinado, e já estavam em uma peleja já por um bom tempo.
Durante a batalha quase sempre procurava Allenda, para se certificar que ela estava bem. Estava difícil, mas haviam conseguido impedir a evolu??o do cerco à Danbara, obrigando os batalh?es a convergirem sobre o exército que haviam montado, composto por seres da terra e da água.
Porém, era muito claro que n?o conseguiriam aguentar muito, se n?o houvesse refor?os. Emissários foram despachados para Danbara, avisando sobre o cerco e solicitando refor?os, mas n?o tinham como saber se haveria tempo para salvá-los, porque o exército de Danbara estava bem distante.
Se quisessem alguma chance de sobreviver, tinham que matar os comandantes.
Allenda, em chamas, saltava e girava com grande agilidade, suas setas de fogo abrindo caminho em meio aos gritos de seus inimigos.
Uivo, com um sinal, abriu o leque com os outros lobisomens e on?as, formando um arco. Os que protegiam os comandantes os viram, mais pelos thianahus que iam se dobrando como cani?os que se quebravam pela aproxima??o de algum animal. Os thianahus cravaram as extremidades das lan?as no ch?o, enquanto com a outra m?o empunhavam suas adagas.
Archabarr e PisaManso, junto com o grosso dos lobisomens, atacavam com violência.
- Precisamos destruí-los – gritou Itanauara.
- N?o poderemos, por enquanto – gritou Allenda se posicionando junto aos seus, vendo uma muralha compacta de lan?as e pessoas e homens à frente, defendendo-se com ferocidade dos que buscavam cercá-los.
- Vou tentar abrir uma brecha para vocês – gritou Itanauara com ódio e determina??o na voz, avan?ando com velocidade para frente.
- N?oooo!! – gritou Uivo, procurando correr mais próximo dela. Mas eram muitos inimigos, e era muito difícil manter uma posi??o. Ent?o Uivo lan?ou um uivo longo e violento, e exigiu mais de si mesmo, se obrigando a avan?ar mais rápido.
Itanauara, vendo o que ele estava para fazer, sentiu seu cora??o se apertar, mas n?o havia o que fazer. Ela n?o tinha a for?a irracional de Uivo.
Uivo ent?o come?ou a correr mais velozmente ainda, abalroando e arremessando contra o pared?o de lan?as os inimigos que encontrava.
Itanauara sorriu e mostrou Uivo para os outros lobisomens, que grunhiram em entendimento.
Corpos de thianahus eram catapultados contra a barreira defensiva dos comandantes thianahus, que logo teve uma sec??o toda atrapalhada.
Itanauara viu o momento em que a sec??o desmoronou e afundou sob os corpos dos thianahus. Em companhia de Uivo e Allenda galgaram rapidamente os corpos e se lan?aram para dentro do círculo. Foi ent?o que ouviram o grito de Taramela, mas n?o havia como remediar. Viram com amargor o erro que tinham cometido.
Os comandantes n?o estavam mais ali. Ao invés deles, agachados, esperando, olhos frios e maldosos sorriram assim que eles tocaram o solo: muitos seres poderados os aguardavam, que se se levantaram com toda violência e avan?aram contra eles. Eram perto de uns dez guerreiros, que brandiam com extrema destreza suas armas. Uivo curvou-se para a frente, as garras totalmente à mostra, as presas brancas mostradas como adagas. Itanauara fincou os calcanhares e brandiu com energia as adagas, e Allenda inflamou-se como uma tocha.
Com o canto dos olhos Uivo viu toda a extens?o da armadilha. A muralha havia se voltado para dentro e se fechava, as lan?as em riste.
Vendo toda a enormidade do que se mostrava tentou se poderar em dem?nio, mas recuou. Estava muito fraco, e era arriscado demais deixar o dem?nio aparecer numa condi??o dessa. Talvez nunca mais conseguisse se despoderar.
Frustrado, resolveu desistir dessa alternativa.
Tinha que se valer como pumacaya.
Sem pensar virou-se e agarrou Itanauara, pouco se importando com seus gritos e ordens.
— Vamos! – gritou para Allenda, que sinalizou que havia entendido o que deviam fazer.
Girando forte no ar, com as garras dos pés abriu uma pequena brecha na muralha que avan?ava e saltou, seguido de perto por Allenda. Assim que tocaram o solo Uivo soltou Itanauara, que deu cabo no ato de dois thianahus que vinham para cima deles.
Itanauara olhou com profundo ódio para Uivo, mas resolveu ignorá-lo. O cerco estava se fechando novamente. Acompanhado de Uivo e Allenda abriram caminho até onde estavam Archabarr, Dhorn, PisaManso e um grupo de lobisomens.
- Me deem cobertura – pediu apressada.
Cercada pelos amigos Itanauara agachou e espalmou o solo. Seu rosto ficou tenso, sentindo seus companheiros em luta ferrada contra os atacantes.
Porém, do outro lado do rio viu o que procurava. Concentrou-se um pouco mais e tocou suas mentes. Sorriu aliviada quando soube que a escutavam, e que apressavam ainda mais os passos.
Ao se levantar ficou frente a frente com a ponta de uma adaga, a poucos milímetros de seu olho. Um punho poderoso segurava o bra?o da adaga. Sem se mover, ouviu quando os ossos eram esmagados e o grito desesperado enchia o ar repleto de sons antes que o peito fosse perfurado e o corpo, violentamente, fosse lan?ado para longe.
Uivo apenas a olhou e virou-se, para continuar o combate.
Itanauara sentiu seu ódio esvair-se ao dar com aqueles olhos. Ao mesmo tempo que havia todo aquele poder havia resigna??o, como de um ser que desconfia que seus dias est?o se acabando mas, que mesmo assim, se disp?e a viver cada segundo com a maior intensidade possível. Itanauara n?o falou nada, entregando-se completamente à luta.
Um batalh?o de thianahu perto da floresta. Um toque e galhos e cipós, num movimento súbito, os destruiu. Itanauara suspirou e agradeceu Uivo pela prote??o, que impedia que se aproximassem dela quando ela se concentrava na terra e em seus seres.
Dois lobisomens morreram bem ao seu lado, e mais um do outro lado. Os bra?os come?avam a doer, o corpo sentindo o peso da batalha. Com preocupa??o viu que o fogo de Allenda já n?o era t?o forte quanto antes. Mas for?ou-se a esquecer tudo isso. O tempo corria depressa, e se a ajuda demorasse um pouco mais, estaria tudo perdido, ao menos para eles. Mas, sorriu, constatando que haviam conseguido atrapalhar os planos dos thianahus e impingir-lhes graves perdas.
- Isso é bom demais!!! – Itanauara gritou cortando a garganta de um thianahu.
O bra?o doeu mais, a adaga parecendo se tornar um pouco mais pesada. Duas panteras e uma on?a caíram. Seu exército come?ava a se desfazer perigosamente.
- Vamos destruir o quanto pudermos! – ouviu Allenda gritar ao seu lado.
Virou-se rapidamente, e sorriu para os seus.
E foi nesse momento que julgou ouvir algo. Uma lan?a estocou e ela se esquivou, a faca cravando-se na nuca de um ser branco como água. Virou-se para Allenda, que cravava uma seta de fogo no olho de um outro, e ouviu o grito de Uivo, se tornando maior, se elevando totalmente nas patas traseiras:
- Eles est?o vindo... Olhem, eles est?o vindo...
Itanauara gritou de emo??o quando ouviu nitidamente os novos sons naqueles campos.
Ent?o os novos sons vieram novamente, agora mais fortes e bem mais próximos. E a chegada do novo grupo foi confirmada quando grande parte dos thianahus se virou para o lado oposto de Itanauara e de seu grupo.
Seres em chamas e grandes criaturas avan?avam, saltando em grandes espa?os. On?as e leopardos e jaguatiricas, e sombras correndo com eles, e pés de ventos e muitos outros que os thianahus n?o conseguiam reconhecer.
Renovados, Itanauara e seu judiado exército se sentiram mais fortes. Com for?a atacaram os que procuravam contê-los, conseguindo, com esfor?o, abrir um espa?o, se sentindo imensamente gratos por serem menos exigidos.
O pêndulo da batalha estava com o refor?o.
Mas os batalh?es inimigos eram como enxame, e o contingente de refor?o se mostrou apenas um paliativo. Logo, o esfor?o cobrado para manter as posi??es, e a própria vida, pareciam monstruosos demais.
A exaust?o estava imensa, e os gestos, perigosamente, come?aram a se parecer com algo mecanico. Até mesmo o poderoso Ybynété parecia automático.
Até que, mais uma vez, chegaram refor?os.
Um grito rouco e alegre saiu de sua garganta e ganhou os espa?os, e a luta pareceu dar uma trégua.
N?o era mais do exército dos thianahus os que chegavam, mas sim um batalh?o adiantado de Danbara.
O impacto sobre os thianahus os fez recuar por um momento. Mas, como uma massa, absorveram o golpe e voltaram ferozmente ao combate.
Renovados, os guerreiros das florestas resistiram, impondo pesadas baixas.
- Itanauara – chamou Uivo, os olhos fixos num lado do acampamento dos thianahus.
Itanauara identificou o que chamara a aten??o de Uivo, e sorriu satisfeita. Ent?o observou Uivo com aten??o, e viu em seu pelo claro muitas manchas de sangue. Olhou para a face de Uivo e sentiu, mais que viu, que ele estava controlando uma grande dor. Fez que n?o tinha visto, em respeito ao seu espírito.
- O que pretende? – gritou de volta enquanto cortava a garganta de um e quebrava o pesco?o de um pequeno ser de dentes afiados.
- Os comandantes! – disse ele, se afastando na dire??o do inimigo. - Vou contra eles. Se eu falhar mande outro, e outro mais... Se n?o os matarmos e os desorganizarmos, iremos todos morrer aqui.
- Eu sei, eu sei – gritou de volta. – Eu vou com você...
- N?o!!! – disse ele com um tom que n?o admitiria discordancia.
- Ent?o se fa?a dem?nio, Uivo – gritou em uma súplica.
- Agora n?o posso mais. Você precisa ficar e organizar todo esse ataque. Eu vou, e vou dar cabo deles. Eles n?o v?o escapar novamente. Fique de olho neles.
Itanauara ficou pensativa por um momento, mas por fim concordou. O momento era muito perigoso e instável para que os dois se ausentassem. Ela abanou a cabe?a, vagarosamente, em concordancia, entendo o receio de Uivo em deixar o dem?nio assumir.
Com o peito apertado viu Uivo sumir, sozinho, para dentro da batalha.
Uivo foi avan?ando, desferindo golpes potentes. Num momento ele tomou o caminho contrário e correu para dentro da floresta, sendo seguido por vários thianahus.
Quando reapareceu estava sozinho.
Rapidamente e em silêncio ele galgou a árvore mais alta, que dava vistas para o acampamento. E, lá embaixo, os viu. Os comandantes eram cinco criaturas que se disfar?avam vestidos de soldados, mas confabulavam entre si com ares soberbos enquanto mantinham ao lado alguns emissários, que os ouviam atentamente. Quando um saía um outro estava de volta. E havia pássaros à disposi??o daquele grupo e guardas atentos e ferozes cuidando da seguran?a deles.
Stolen story; please report.
Uivo ficou avaliando, medindo movimentos.
De repente um dos pássaros olhou para a árvore e o viu. Antes que piasse, que avisasse de sua presen?a, Uivo saltou.
Allenda, de longe, ficou com a garganta de um thianahu apertada em suas m?os, a vis?o de Uivo saltando, magnífico, poderoso, em dire??o aos inimigos, encheu seu peito de orgulho e apreens?o, ainda mais quando vários thianahus se voltaram para onde ele estava.
Desesperada avisou PisaManso de que estava indo na dire??o de Uivo. Com um movimento chamou Archabarr.
Enquanto corria Allenda se concentrou, os olhos vidrados à frente. Nunca tentara aquilo antes, mas esse era o momento em que teria que tentar. Tomada de energia subiu sua temperatura, queimando tudo em que tocava. Quando viu o ardun avan?ar ferozmente pelo meio dos thianahus em sua dire??o n?o se conteve, e gritou de euforia.
Archabarr também o viu, poderoso, incomparável em sua for?a. Ele era muito grande, e o fogo de que era tomado parecia vir de uma fornalha ardente.
Como se fosse em camara lenta, maravilhado o viu emparelhar com Allenda que, com um golpe, segurando com for?a o pelo do bicho, se lan?ou para cima e girou, caindo sobre as costas do violento Ossudo, do ardun, que só um caipora de grande poder amea?ava chamar.
Ele tinha o dobro do tamanho de um queixada, e presas pontiagudas e vermelhas e uma fúria monstruosa.
- Vamos, Arrancaárvore – gritou Allenda aferrando as pernas e as m?os para se amarrar sobre o ardun, o corpo dobrado para frente.
Uivo caiu no meio do grupo, pesado, seco, dois comandantes esmagados, enquanto um tombava, o peito explodido com o golpe violento. Lentamente, para espanto de todos, Uivo levantou-se em toda sua altura. Aproveitando-se do torpor que os acometeu Uivo cortou os dois comandantes restantes, que foram lan?ados longe, sem vida.
Ent?o eles avan?aram, desesperados, raivosos, em panico, tomados de ódio
Uivo, saltando e esquivando, tentou escapar do cerco. Mas era impedido de tomar a dire??o da árvore, da floresta. De repente sentiu uma dor quente e líquida do lado direito.
Como em sonhos viu a floreta tentar se dobrar, por pedidos de Itanauara, desconfiava. Mas estavam longe, e apesar da floresta dar cabo de muitos thianahus, ele permanecia inatingível.
Com violência girou e cortou o peito de um soldado, rasgando roupas e carnes. O homem foi lan?ado para longe, mas um ser colorido e menor conseguiu desferir um golpe em sua coxa. A dor quase o fez tombar sobre um joelho. Resistiu, mesmo sabendo que seu tempo estava se esgotando, porque sabia que n?o conseguiria mais escapar, porque n?o poderia mais saltar.
Em sua mente a escolha fácil, que recusava com prazer. Preferia morrer como pumacaya.
Foi ent?o que eles surgiram, como mágica, do seu lado, Allenda e Archabarr e um queixada como nunca tinha visto antes. Tomado de desespero os viu serem engolfados pelo peso dos inimigos.
E viu que cortavam, queimavam e rasgavam, e que pouco efeito fazia, porque os inimigos pareciam nascer dos mortos.
Uma promessa, ouviu rodar em sua mente. Em dem?nio aceitaria se perder, para proteger, para cuidar daquela que tinha o seu cora??o.
Ent?o, deixando de lado seus medos e a possível perda de tudo liberou o dem?nio.
Uivo deu um rosnado enraivecido e desvairado, e seu ódio imenso parecia querer consumir tudo quando a viu. Com violência desmedida avan?ou, quebrando e retalhando, num desvario e numa velocidade alucinantes. Os thianahus se defenderam, atingindo-o várias vezes. Mas Uivo continuava, irresistível, letal. Plumas negras se revolviam e matavam, cada vez se adensando mais e mais enquanto ele caminhava em dire??o à Allenda, cada vez mais tomado de poder, de um poder negro, irresistível e sombrio.
Archabarr se virou no momento em que várias daquelas nuvens densas e negras, em formato de espor?o, se dirigiam contra ele. Olhou para os lados, procurando um meio de se p?r a salvo, mas n?o havia como: estava cercado por thianahus. Ent?o, resignado, continuou dando combate aos inimigos, esperando ser morto a qualquer momento. Surpreso estacou, vendo setas cinzas atravessando seu corpo e atingindo os thianahus ao lado, sem que nada o tocasse. Ao levantar os olhos viu os thianahus, horrorizados com o que viam, batendo em retirada. O grande dem?nio ainda pegou os três mais recuados e os destro?ou. Em pé rugiu raivoso para os que fugiam para dentro da mata. Num salto, estava mais perto de Allenda, os olhos preocupados, em dor, enquanto ia em sua dire??o.
Allenda estava caída, desfalecida, guardada pelo imenso ardun, que bufava e rondava em volta dela.
Uivo passou por Archabarr, que mostrava muitos ferimentos. Os olhos estavam presos em Allenda, o manto cinza se recolhendo, o nefelin se mostrando.
Quando se aproximou apenas tocou em Arrancaárvore, que recuou e o deixou passar.
Uivo se agachou ao seu lado, tomando sua cabe?a com delicadeza, de onde escorria um filete de sangue.
- Ela vai ficar bem! – tranquilizou Archabarr olhando com curiosidade para Uivo. - Engra?ados vocês... Ela teve a mesma rea??o quando achou que você poderia ser morto.
- Ela n?o deveria se arriscar tanto... – murmurou tomado de dor.
- Foi incrível, o modo como veio endemoninhado... – sussurrou admirado. – Vou ficar sempre perto dela – brincou.
- Sou parte dem?nio... é natural que eu possa me transformar em um...
- Mas, o que vi, foi mais que isso.
Uivo ficou tenso, em silêncio, examinando o rosto de Allenda. A um pequeno movimento nos lábios da flor-do-mato Uivo sorriu aliviado.
Ent?o, com um movimento se afastou um pouco, deixando espa?o para o ardun, que se aproximou e tocou em Allenda.
Com um suspiro viu que vários ferimentos de Allenda estavam sarando, e o sangramento na cabe?a parava.
O ardun resfolegou suave e se afastou, se pondo de guarda, bufando para um thianahu desgarrado que, apavorado, voltou para o caminho de onde viera.
Assim que ela se mexeu um tanto, mostrando que estava acordando, os olhos de Uivo ficaram novamente duros, examinando a batalha que parecia morrer.
De relance viu o ardun cuidando de Archabarr, que sorria satisfeito e bastante aliviado.
- Precisamos acabar com estes e avan?ar contra o rio para ajudar os outros – disse.
- Fiquem aqui mais um pouco. Vocês est?o muito feridos – disse Archabarr agradecendo ao ardun com uma vênia, o que foi correspondido com uma bufada. – Eu farei isso acontecer.
Dito isto o ellos se foi ao encontro dos seus. N?o demorou e os campos foram se esvaziando.
Uivo, ajoelhado ao lado, n?o tirava os olhos de Allenda, que lentamente foi se recobrando.
Quando ela abiu os olhos e lhe sorriu sua alma emitiu um suspiro de alívio.
- Você está bem? – perguntou num sussurro.
- Fiquei preocupada com você – disse ela passando a m?o na cabe?a e vendo o sangue na palma da m?o. – Quero dizer..., é que.... Você faz falta numa guerra como essa e...
- Já passamos disso, meu bem. Mas, você também faz falta... – sussurrou ele, olhando-a fundo nos olhos, que ela desviou lentamente para se focar em seus ferimentos.
- Você veio... – falou examinando a quantidade de corpos ao lado, examinando de relance os estranhos ferimentos que ele mostrava. - Você está muito ferido!
- N?o ligue. Estou bem melhor que aqueles que matei – disse com um sorriso, levantando-se e dando a m?o a ela.
Allenda se levantou e lhe sorriu, enquanto ele se transformava novamente em puma.
- Você viu meu amigo ardun, meu Arrancaárvore? – apresentou, passando a m?o com carinho no gigante, enquanto ele fungava suave sobre as feridas de Uivo.
- Ele é formidável – falou acariciando a cabe?a ossuda, o que surpreendeu Allenda. – E eu nunca vi algo t?o terrível e t?o nobre.
- Sim, ele é formidável – ela respondeu carinhosa.
- A situa??o no rio está ficando muito perigosa. Precisamos ir – ele falou tomando-a nos bra?os e colocando-a sobre o ardun, que bufou satisfeito e come?ou a se incendiar. – Ybynété e os outros contam conosco.
O cansa?o era imenso. Em várias ocasi?es Uivo ficava se perguntando o quanto ainda iriam aguentar. Altos e baixos, recuos e enfrentamentos, desespero e esperan?a. E em tudo aquele cansa?o quase mórbido, os movimentos quase automáticos, o último esfor?o antes do último esfor?o.
Os olhos, quando se permitiam, tal como os ouvidos, procuravam pelo refor?o, que demorava.
E toda aten??o voltava novamente para a batalha, para o sangue e os corpos que tinham que destruir.
Até que, subitamente, pensou ouvir algo. Prestou mais aten??o.
Eram com certeza sons de trompas ao longe, revoando dentro da floresta.
II
- N?o desistam – gritou Ybynété para os seus, tomado de nova energia. – Vejam, do outro lado do rio. Nossos companheiros est?o vivos, e voltaram para nós. Vivas, vivas – gritou eufórico, embrenhando-se alguns metros, matando vários thianahus. – Vamos abrir caminho para eles – gritou enfurecido. – Canvas, Túnis e Trília, ajudem aqui – gritou para os três magos que logo, apear de feridos, usaram algo de seus poderes para aumentar a prote??o em torno do grupo.
Com grande dificuldade, protegidos pelos poucos seres da água que ainda conseguiam lutar, se reuniram na margem, formando uma linha de defesa precária, mas aguerrida.
Uivo mostrava-se muito ferido, mas havia aquela energia desvairada nos olhos; Itanauara tirava uma ponta de faca de pedra do bra?o; um filete grosso e seco riscava toda a face esquerda, manchando a tatuagem que brilhava intensa. PisaManso mancava, Archabarr tinha um cabo de flecha encravado no ombro, Dhorn vinha manchado de sangue, Allenda tinha profundas cicatrizes nos ombros e costas, e seu fogo estava pálido, e o ardun, ainda estriado de linhas rubras, mostrava muitas flechas fincadas no corpo. Houve um momento de alegria quando os dois grupos se encontraram, e até mesmo entre os marciais lobisomens. Mas havia dor e aquele cansa?o terrível, aquele perigoso esgotamento, viu Ybytu. Alguns lobisomens que ainda lutavam tinham um bra?o decepado, ou um profundo e dolorido corte na cabe?a, ou um bra?o pendente e inútil. Mas estavam ali, pensou Ybytu, orgulhoso de seus companheiros.
- Eles est?o vindo! Danbara está se aproximando. Eu ouvi suas trompas – gritou Itanauara assumindo o controle de todo o grupo.
Ybynété virou-se feliz para ela, no momento de vê-la se agachar repentinamente enquanto se defendia do ataque de um meio-gigante.
Com um golpe, no momento em que Itanauara desferia um golpe fatal com sua adaga, Ybynété quase arrancou sua cabe?a com o golpe que desferiu.
Itanauara girou e se levantou, deixando o meio-gigante se estatelar no ch?o.
Túnis se poderou fracamente como um anaquera e rasgou um colorido, enquanto Trília e Canvas derrubava ao solo um manta solitário, do qual logo Archabarr deu cabo.
- Danbara e seu exército est?o próximos. Vocês ouviram as trompas. Temos que resistir, temos que vencer – ela gritou. - Nenhum deles sairá vivo daqui – incitou vendo PisaManso expulsar do seu lado um grupo de thianahus, que logo retornaram para cima dele, porque sua for?a estava pequena e o terror que agora impunha era fraco.
Uivo virou-se para a direita. Ybytu estava caindo, viu. Com um golpe violento recha?ou um ataque e acorreu para os lados onde ele estava no momento exato de impedir que um thianahu lhe estocasse o cora??o.
Com esfor?o levou-o para dentro de um pobre círculo de seguran?a, envolvendo a margem e parte do rio. Mas n?o pode ver como ele estava, porque os thianahus pareciam ainda mais determinados a dar cabo deles, para poderem enfrentar os que se aproximavam.
Uivo procurou por Allenda, se perguntando se tudo n?o seria destino, um teste de honra na palavra dada.
Com um sorriso se afastou para fora da linha de defesa, dando conta que os thianahus daquele lado se arvoravam, imaginando que ele estava todo desprotegido.
Ainda com os olhos em Allenda, que se esfor?ava em defender a si e aos seus, lentamente, num último esfor?o, com um grito horripilante Uivo se eri?ou, enquanto sombras cheias de farpas foram surgindo e crescendo ao seu lado. Com um movimento súbito se ergueu sobre seu pequeno exército, as sombras se alongando amea?adoras, se espraiando em torno do seu judiado exército, matando e destro?ando com selvageria, como se um estranho e terrível animal tivesse criado vida ali.
Ent?o, como se tudo estivesse se fechando sobre aquele dia, de súbito várias trompas explodiram bem próximas. Tudo parou, e o silêncio parecia um peso enorme. O tempo escorreu mais lento pelo peso dos segundos em passos forjados, no tropel que foi se intensificando até parecer ser avalanche nas montanhas. Súbito, seres rápidos como coriscos se bateram à esquerda. Sons de batalhas e gritos, cada vez mais próximos. E ent?o uma avalanche de criaturas saltou por sobre suas cabe?as, e foram tomando a batalha para si.
Itanauara caiu de joelhos, o cansa?o pesando, logo sendo ajudado por Túnis, que por magia lhe cedeu um pouco da pequena energia que ainda tinha.
Uivo girou e se concentrou nos poucos sombras e mantas que estavam ali, destro?ando um a um.
Quando o último se desfez, sobre os exércitos que se batiam ficou cismando, as nuvens se adensando como se n?o houvesse limite.
O sabor do ódio era palpável, como o sabor do medo e do horror que se erguia do ch?o. Embebia-se nisso, sua alma sentindo enorme prazer. Lentamente, sem se aperceber, já n?o havia dois exércitos, nem mesmo lados em disputa, mas apenas seres com receios e tomados de dores e medos.
Perdia-se satisfeito nessa contempla??o quando seus olhos a viram, e nela se deixaram, perdidos, a alma suavizando seu ódio e seu prazer, até que...
Uivo suspirou fundo com enorme alívio, um sorriso se formando entre as plumas escuras que se suavizavam no sorriso da flor-do-mato, até que as nuvens se foram, sob os olhos agradecidos e felizes de Allenda, seguindo Uivo até que tocou no solo, bem ao seu lado.
Ybytu e todos os outros também se deixaram cair de joelhos, totalmente esgotados.
Quando Uivo levantou os olhos agradecidos viu que alguns guerreiros haviam sido destacados para manter um cord?o protetor em volta deles. Devagar examinou seus ferimentos, conferindo que seu tempo como dem?nios n?o havia sido suficiente para sará-los todos, tendo agora que se cuidar apenas com sua capacidade de pumacaya. Com preocupa??o verificou a situa??o dos seus companheiros. Tomado de profunda tristeza verificou a falta de muitos, e soube que haviam morrido. Preocupado procurou por Ybytu, pois sabia que ele era o mais ferido da tropa.
Ao vê-lo deitado num lado se aproximou e se agachou ao seu lado. Em silêncio colocou a cabe?a do amigo sobre seu colo e ficou quieto, pensando.
A luta desenrolou-se em tremenda selvageria por longo tempo até que, finalmente, os thianahus deram mostras de fraquejar.
Ao cabo de pouco tempo a partir de ent?o o exército invasor foi sendo empurrado, for?ado de volta, destro?ado, recha?ado, escorra?ado, dispersado e ca?ado. Finalmente, os entes de roupas coloridas e dentes pontiagudos e os homens de ponchos coloridos e olhares aterrorizados se afastaram de vez.
Devagar os sons de guerra foram substituídos pelos sons de acampamento, cheio de seres cansados e feridos.
Allenda olhou preocupada para o ardun, com dezenas de setas e lan?as fincadas no corpo. Devagar se levantou e come?ou a retirá-las, no que foi ajudada por Uivo.
O ardun resfolegou agradecido.
- Obrigada, Uivo...
- Eu que devo agradecer, Allenda – falou ele, a m?o apoiada numa seta ainda cravada no ardun.
- E por quê?
- Por me manter vivo, por me manter..., Uivo.
Allenda sorriu. Mas, ao ver a cara do ardun, riu baixinho.
Uivo percebeu o que acontecia quando o ardun se mexeu para tirar a seta de seu alcance, colocando mais para perto de Allenda que, com cuidado, tomou a seta e a puxou do seu corpo.
Uivo riu e se desculpou com Arrancaárvore, que apenas bufou aliviado.
Ent?o o ardun se incendiou, e as setas e lan?as restantes se pulverizaram.
- Acho que ele n?o precisava de nossa ajuda, afinal – riu Allenda se levantando, e em companhia dos dois tomava a dire??o do grosso da tropa.
- Que bom que fingiu que precisava, amigo – falou Uivo, batendo amistoso no ossudo, que caminhava ao lado.
Itanauara olhou com carinho para Uivo, Allenda e o gigantesco animal que os acompanhava. Estavam cansados, estavam feridos, mas pareciam bem.
Ent?o examinou os seus, e viu que todos tinham sobrevivido àquele duro teste, uns ajudando os outros a se restabelecerem de seus ferimentos.
E viu a jovem Trília, indo de um em um, observando, cuidando, suas m?os emitindo pequenos fachos de luz verde. Feliz viu Canvas e Túnis, dispensando o mesmo cuidado aos outros, juntamente com alguns caiporas e queixadas.
Tudo ficaria bem logo, sorriu satisfeita. Adanu soubera montar muito bem aquele grupo.
Ent?o curiosa viu Allenda se afastar na companhia do ossudo, enquanto Uivo ficava para trás, observando os dois. Em passos lentos os dois tomaram a dire??o da borda da floresta. Comovida retirou os olhos deles.
As despedidas s?o sempre doloridas.
Allenda estava perto da floresta, abra?ada ao ossudo, que se mostrava tranquilo e em paz. O sol estava alto e a grama estava verde, e a fina lamina d'água brilhava iridescente, como se uma miríade de sois tivesse baixado à terra, esperan?osa de espantar as sombras e terminar de vez a guerra.
Uivo suspirou ao ver Allenda se levantar e, caminhando lentamente, um sorriso no rosto, se aproximar e o abra?ar. Ent?o, assim abra?ados, devagar voltaram para o acampamento improvisado, enquanto o ossudo, após resfolegar suavemente, sumia na floresta.