Forcei minhas pálpebras a se abrirem num solavanco brusco. Já estava acordado, mas os remédios ainda pesavam sobre meus cílios, puxando-os para baixo com uma for?a contra a qual eu mal podia lutar. Ainda assim, tentei. Era como cavar uma cratera dentro das órbitas, rasgando um véu noturno para que o sol invadisse meu cranio.
Consegui abri-los um pouco — o suficiente para ver os raios solares filtrando-se pelas frestas das venezianas, iluminando o pequeno c?modo ao meu redor. As formas que me cercavam eram nebulosas e deformadas, como vultos de coisas que um dia tiveram nome e contorno. Os malditos remédios distorciam tudo. N?o acalmavam. Só me anestesiavam, me desconectavam do que ainda me fazia humano.
Uma pomba branca cruzou o quarto, como uma lembran?a. Pousou em minha cabe?a e, com a voz aveludada da minha psicóloga, sussurrou ao meu ouvido:
“— Vamos fazer um combinado ent?o... — Aquele tom suave sempre entrava nos meus ouvidos como um sopro de ver?o, e eu nunca impedia a entrada. — Quando acordar, pare por um momento e olhe ao redor. Vamos chamar de "protocolo bom dia".” A ave ent?o bateu as asas e subiu em dire??o ao teto, atravessando-o.
No início, achei que fosse só mais um método para detectar alucina??es — ainda que isso nunca tivesse sido um problema real durante minha longa estadia. Talvez ela n?o fosse t?o esperta quanto parecia, afinal, sabia que eu n?o via coisas. Mas depois da primeira vez, entendi. Observar os móveis, as paredes, a janela... ajudava a estabilizar minha vis?o de maneira mais rápida, mais consistente.
Espantei as dúvidas como se espanta um gato de uma lata de lixo. Eu precisava que meus olhos funcionassem direito. Ent?o comecei o protocolo.
O quarto era pequeno e rigorosamente quadrado, mas surpreendentemente alto — suas paredes subiam sem esfor?o até pelo menos cinco metros. Ainda assim, o espa?o era claustrofóbico. Como se a altura apenas real?asse a sensa??o de estar preso no fundo de um po?o.
A janela ao lado da cama dominava boa parte da parede: tinha cerca de três metros de altura e exibia uma tonalidade repugnante, um salm?o desbotado e sujo. As venezianas externas eram simples, mas pesadas, quase absurdas no tamanho. Internamente, portas com seis placas de vidro cercadas por guarni??es amadeiradas, tingidas do mesmo salm?o gasto. Entre as duas camadas, barras de ferro se erguiam — uma a cada punho de distancia, sólidas, intransigentes. Tentei dobrá-las algumas vezes, mas nem com a for?a que um dia considerei descomunal consegui vencê-las. Talvez os remédios estivessem me diminuindo.
Ergui os olhos para as colossais paredes bege, que no topo mudavam de cor: um trecho de quarenta centímetros em castanho fosco marcava o fim das paredes e o início do teto. Essa borda criava a ilus?o de uma caixa — tampa marrom, laterais creme. Talvez fosse exatamente isso: uma caixa sem abertura, sem escapatória.
Meu pesco?o cedeu, pesado, e devolvi o olhar ao ch?o. Ao lado, repousava um armário de porta dupla. A que ficava virada para mim guardava minhas poucas roupas, itens de higiene e os poucos livros que consegui trazer de casa. Os que haviam por aqui eram fúteis demais — e minha mente, intensa demais para tolerar a futilidade.
Do outro lado, ficava a parte do armário de meu colega e sua cama. O imprestável n?o tinha uma janela, mas em compensa??o, a porta dupla de saída estava em seu território. Ainda assim, o espa?o até ela era considerado um campo neutro. No fim, meu lado ainda era melhor.
— Dorme direito — murmurei ao meu colega.
Ele jazia em sua cama com a exatid?o de um cadáver: peito erguido, dedos entrela?ados sobre o est?mago, pernas perfeitamente alinhadas e o rosto apontado para o teto da caixa onde vivíamos. Quis me levantar e sacudi-lo. N?o para acordá-lo — isso seria gentil demais —, mas para arrancar algum som de seus pulm?es, qualquer ruído que provasse que ainda estava vivo. Ou, quem sabe, tirar-lhe todo o ar de uma vez, ajudá-lo a alcan?ar esse estado que tanto simulava. Torná-lo, enfim, o que fingia ser.
Inspirei fundo. Uma, duas, três vezes. Pelo bem de quem dormia ao lado, mas também pelo meu. Era tentador. Seria fácil terminar com ele ali mesmo — sufocá-lo com o travesseiro, torcer seu pesco?o como um pano molhado, improvisar uma lamina com qualquer objeto do quarto. Sempre fui engenhoso. Criar armas nunca seria o problema.
Mas controle era parte da regra. Parte do protocolo.
N?o havia muito o que ver no quarto, mas bastava. Mesmo conhecendo de cor cada curva dos móveis, cada imperfei??o nas paredes, me for?ar a enxergá-los — a lembrar que estavam ali — ajudava. Me estabilizava. Como se cada objeto fixasse minha presen?a no mundo.
Levantei com cuidado e caminhei até a porta. Como n?o havia trancas, bastava empurrá-la. Esqueci, mais uma vez, da for?a com que costumo fazer as coisas. A porta se escancarou com violência e atingiu alguém no corredor.
O impacto arrancou um grito do homem, que cambaleou para trás e, ao se recompor, me lan?ou um olhar estranho — algo entre desprezo e arrogancia, como se eu fosse menor. N?o olhou nos meus olhos. Nunca olham.
Por um instante, imaginei segurar seu rosto com as duas m?os e dobrá-lo sobre si mesmo, até que as desculpas escorressem de sua boca. Mas respirei. Afinal, o erro fora meu — e como alguém de natureza superior, admitir isso fazia parte do fardo.
— N?o queria te machucar — disse, adotando o tom mais calmo que consegui encontrar dentro de mim.
Ele continuou me encarando por mais alguns segundos, massageou o ombro com duas passadas curtas e se afastou, desaparecendo no banheiro ao final do corredor.
— Ent?o se empanturre no inferno. — Gritei, mais para mim mesmo do que para ele.
Por alguns segundos, imaginei segui-lo. Ensiná-lo a diferen?a entre um acidente e um aviso. Mostrar-lhe o que minha for?a poderia fazer quando usada com inten??o.
Mas parei.
Fechei os olhos e deixei que a voz da psicóloga me encontrasse. Suave como a penugem de um pássaro branco, ela pousou nos meus ouvidos:
"Eu respiro fundo, solto a tens?o, e deixo a paz guiar meu cora??o."
Recitei junto, n?o em voz alta, mas dentro de mim. A voz dela se instalou como uma presen?a — n?o a expulsei. Com dificuldade, é verdade. Mas aceitei.
E no fim, isso era o que importava.
Empurrei a porta com as costas, deixando para trás a caixa bege. Entrei no corredor, um retangulo longo e doentio, onde as paredes, outrora talvez brancas, haviam adquirido um tom amarelado de nicotina envelhecida. Dos dois lados, portas duplas marcadas com números, todas guardando réplicas do quarto que deixei — pequenas caixas onde, com sorte, os mortos-vivos ainda fingiam respirar.
O fluxo de pacientes come?ou a engrossar junto com o cheiro do café — sem cafeína, sem alma — que se espalhava no ar como um convite morno à rotina. Avan?avam em silêncio, como um cardume zumbificado de passos arrastados e olhos ocos. Alguns ainda pareciam ter vida. Provavelmente casos leves: duas cartelas de ansiolíticos, talvez três, e um diagnóstico simpático. Os outros... eram como eu. Carregavam tanto medicamento no est?mago que o fígado e os rins já haviam apresentado carta de demiss?o.
Meus passos destoavam. Eu n?o pertencia ao ritmo letárgico da massa. Ultrapassei com facilidade o velho de cabelos grisalhos e bengala de madeira escura. Depois a senhora de pernas curtas e nariz arrebitado. Por fim, o magrelo de pernas compridas, que mesmo com a vantagem dos membros finos n?o tinha for?a para manter o ritmo.
Foi ent?o que algo me desviou.
Ao lado das portas do refeitório, o hall de entrada. Escutei a tranca do primeiro port?o se abrindo, seguida pelo som seco do fechamento e, em seguida, o bipe agudo de um cart?o sendo passado no sensor. A porta à minha frente se abriu com um clique abafado.
Dois enfermeiros entraram empurrando uma cadeira de rodas. Sobre ela, uma mo?a jovem, cabelos castanho-claros e express?o distante. Em suas m?os, apertava um pequeno crucifixo prateado — provavelmente parte de um colar, embora qualquer tipo de cord?o fosse terminantemente proibido. Os dedos dela deslizavam pelo objeto, tra?ando a cruz com uma delicadeza religiosa. Seus olhos percorriam o espa?o com uma cautela muda, absorvendo cada detalhe ao redor. Quando virou o rosto para a esquerda, vi a mancha escura em sua bochecha — uma massa negra que subia até a lateral do olho.
Senti o est?mago revirar.
Como permitem que ela entre assim? Por que n?o cobrem aquilo? Uma máscara. Um pano. Qualquer coisa.
Era grotesco. Desrespeitoso.
Repugnante. Senti o humor se acirrar de novo. Aquela mancha... eu a arrancaria com as próprias unhas, e ninguém notaria a diferen?a. Talvez até agradecessem. Mas o mantra soprou nos meus ouvidos antes que a ideia criasse raiz. Ainda assim, ela teve dificuldade para entrar — talvez porque, sem perceber, eu tenha segurado a porta por alguns segundos a mais.
Deixei o hall para trás e entrei no refeitório.
N?o era o último, mas estava longe de estar entre os primeiros. Três mesas retangulares ocupavam o centro do sal?o, ladeadas por cadeiras que pareciam prestes a ceder sob o peso de qualquer pensamento mais pesado. Havia assentos demais para a quantidade de corpos. Mesmo assim, a maioria se amontoava em uma única mesa, como animais de fazenda empurrando focinhos uns nos outros para lamber o mesmo balde de lavagem.
Quando vi aqueles porcos se chafurdando naquela pasta insípida que chamam de comida, o est?mago embrulhou. Caminhei até eles. Por um instante, planejei agarrar um por um pela nuca e arrastar seus rostos pela madeira suja, deixando rastros de pele e baba como caracóis quebrados.
Mas o mantra ainda ecoava. Ainda havia voz em meus ouvidos.
Respirei. Soltei. Deixei a paz guiar meu cora??o — ou ao menos domesticar minhas m?os.
Sentei-me o mais longe possível.
Aos poucos, os demais foram chegando. Tomavam seus lugares como pe?as de um tabuleiro bagun?ado. A equipe de plant?o — enfermeiros, técnicos, sombras — também estava presente. Ter todos nós reunidos num único c?modo era sempre uma má ideia. Bastava uma fagulha errada para incendiar tudo. Especialmente se alguém resolvesse me provocar.
Me acomodei num canto isolado, como quem testa um experimento social: queria ver quem se atreveria a sentar perto. Um gesto simples, mas revelador. Aproxima??o é quase sempre erro de cálculo.
Claro que, se alguém come?asse a mastigar feito os porcos da mesa central, eu teria que tomar providências. E se alguém disser que uma colher n?o pode perfurar um olho, n?o acredite — elas podem sim. A quest?o nunca é a ferramenta, é a vontade.
E disso eu tenho de sobra.
Olhei para a copa: cestos de p?es dormidos, doses mornas de café com leite, alguns cremes de procedência duvidosa. Meu est?mago, claro, já estava comprometido — culpa deles. A náusea constante, misturada ao mau humor destilado pelas pequenas catástrofes da manh?, formava a receita exata para um desastre.
Foi ent?o que percebi.
N?o era só que ninguém se sentava ao meu lado. Era a mesa inteira. Intocada. Vazia. Um campo de isolamento que se formara ao meu redor como uma zona de quarentena invisível. Evitavam-me como se eu fosse contagioso. Talvez fosse.
O sangue ferveu.
Fechei meus ouvidos para que ela n?o entrasse — a voz mansa, o pássaro branco, o mantra.
N?o dessa vez.
Levantei-me com lentid?o cruel, arrastando a cadeira pelo ch?o, fazendo-a gritar contra o piso como unhas em lousa. Antes que pudessem reagir ao som, chutei-a para trás com o pé direito. A madeira se estilha?ou contra o armário de condimentos, voando em peda?os. E, de repente, o silêncio.
Um silêncio absoluto, perfeito.
Os rostos voltaram-se para mim com uma mistura de choque e fascínio. Aqueles olhos vazios, arregalados, presos num instante de medo puro. Era talvez o momento mais humano que vi ali dentro — e, ironicamente, o mais belo. Deveriam ter fotografado. N?o... Pintado. Um óleo sobre tela, digno de Cabanel. Uma nova “Queda dos Anjos Rebeldes” do Velho, mas sem anjos, só peda?os de homens tentando parecer vivos.
Enquanto ainda estavam paralisados olhando para os cacos de cadeira, abri a porta para o corredor. Poderia ter terminado ali. Poderia ter voltado calmamente para o quarto e deixado a poeira assentar.
Mas senti os olhares em minhas costas. Perfurando. Analisando. Julgando.
Ent?o fechei a porta com for?a.
N?o — eu a arremessei contra o batente.
O som reverberou pelo prédio como um trov?o seco, ressoando nas paredes, nas janelas, nas entranhas de cada covarde presente. Um lembrete de que eu existo. De que eu vejo.
E, mais importante, de que eles deveriam ter medo de me proporcionar mais um surto. …
Surto.
Mais um.
Outro surto.
Tive um… há pouco… mas… onde está?
Corri sem pensar, os pés levando meu corpo como se soubessem mais do que eu. A primeira porta à frente se abriu fácil — banheiro. Talvez feminino. N?o me importei. Só entrei.
Me enfiei na primeira cabine livre e sentei no vaso, como quem busca abrigo no meio de um bombardeio. Agarrei minha cabe?a como se fosse uma fruta cítrica, madura demais, e comecei a espremer. Meus dedos cavavam as têmporas, os olhos fechados com for?a, numa tentativa desesperada de arrancar dali uma gota de memória. Um lampejo. Uma migalha. Mas tudo estava seco.
Ent?o veio o gosto.
Bile.
Subiu pelo meu peito e queimou minha garganta. O mundo girou, os azulejos vibraram, e uma dor afiada detonou no centro do meu cranio. Uma explos?o interna. Comecei a tatear a cabe?a como um cirurgi?o cego, tentando localizar o ponto de fuga — o buraco por onde escaparam minhas lembran?as.
Toquei a testa.
Depois as laterais.
Cabelos embara?ados, suor.
Fui até atrás das orelhas. Desci. E ent?o, lá estava.
Ali.
Atrás da cabe?a.
O arrepio subiu pelas costas como um jato de gelo. Meus dedos tocaram uma protuberancia. Uma linha tortuosa. Carne mal costurada.
Uma cicatriz.
Espessa. Cirúrgica.
Na mesma hora, meus neur?nios acenderam como fósforos numa corrente. Estalos de luz, pequenas explos?es. E tudo fez sentido. A matemática era simples. T?o simples quanto um mais um.
Eles me apagaram.
Devem ter misturado algum sedativo na medica??o, forte o bastante para derrubar um boi. Esperaram meu corpo desabar na cama, inocente. Esperaram o momento certo. Ent?o vieram — laminas, luvas, tubos.
E extraíram minhas memórias.
Arrancaram de mim a verdade.
Com bisturis e anestesia.
Cirurgi?es da mentira.
Poderia tentar explicar, com o pouco que sei sobre o cérebro humano, como funcionaria a extra??o de memórias — mas seria infrutífero. Palavras n?o apagariam o que já foi feito. A ferida n?o se cura com teoria. Era mais valioso, agora, pensar no como — em como eu cobraria explica??es. Como faria justi?a.
Chamar um médico? Sentar e conversar? Seria de uma imbecilidade monstruosa. Alegariam delírio. Um surto esquizofrênico. Me dopariam ainda mais, e eu passaria o resto dos meus dias babando em um canto, sorrindo para paredes beges. N?o. Teria que ser engenhoso. Teria que ver com os próprios olhos, pegar com as próprias m?os. Pegá-los no ato, sem chance de nega??o. E eu tinha o plano perfeito.
Essa pequena dan?a das cadeiras no refeitório n?o fora um surto real. Nada digno de bisturis. Ainda. Mas um surto real — um bem coreografado — seria suficiente. Teria que fingir. Convencer. Um espetáculo. Talvez um paciente precisasse se ferir. Um sacrifício necessário. Quem sabe quantos já foram lobotomizados às escondidas? Quem seria o próximo?
Antes de qualquer coisa, precisava estar lúcido. Totalmente. Os remédios turvavam meus pensamentos como lama em um copo de vidro. Impediam que minha mente enxergasse os detalhes. Diziam que era pra me acalmar. Mas nada me acalmava. Nem remédio, nem tempo. A raiva era um animal acordado dentro de mim. E eu só podia mantê-lo preso se estivesse desperto.
E sempre existia o risco de me sedarem de novo — qualquer deslize, e perderia tudo. Eles fariam de novo. E de novo. Até que eu deixasse de existir.
As ideias come?aram a girar ao meu redor, como pássaros, sobrevoando minha cabe?a. Isso me lembrou dela. Da psicóloga. Dos mantras que sussurrava, como vento morno, hipnótico. Eu sabia como ela fazia. Conhecia a cadência. A constru??o das palavras. O ritmo. Eu também poderia hipnotizar alguém. A mente humana é mais frágil do que parece.
Saí do banheiro e mergulhei de volta no corredor. O café da manh? havia acabado. Os outros pacientes, como gado entorpecido, já voltavam para os quartos — a maioria se entregaria ao segundo sono do dia. Aproveitariam o tempo livre para fugir da realidade em um torpor químico. Como sempre.
A case of literary theft: this tale is not rightfully on Amazon; if you see it, report the violation.
Esperei, encostado na parede, à espreita. Como um predador atento. O fluxo diminuiu. Os passos rarearam. O silêncio come?ou a se assentar.
Ent?o caminhei. Pé ante pé.
Empurrei a porta do meu quarto, sem fazer barulho.
E lá estava ele.
Meu colega.
Imóvel. Inabalável.
Deitado como um corpo num velório barato. M?os entrela?adas sobre o peito. Olhos cerrados em falsa paz. A boca ligeiramente aberta, como se rezasse.
Ele nunca decepciona.
Aproximei-me devagar, o som de meus passos abafado pelo ch?o. Me ajoelhei aos pés de sua cama, observando-o como um escultor diante do mármore. Ele seria meu primeiro teste.
Minha chave.
Minha isca.
Meu espetáculo.
Eu sabia que precisaria entrar em sua mente — abrir as portas surdas de seu ouvido, escancarar os batentes da raz?o e plantar ali minha ideia como uma semente inevitável. Mas aquilo n?o era um vulc?o em erup??o a ser contido. Era apenas um toco de madeira ainda em brasa, bastava empurrá-lo com um sopro, guiá-lo até o fogo certo.
E foi mais simples do que eu imaginava.
Aproximei minha boca de seu ouvido, com o cuidado de um amante e a frieza de um carrasco. Aveludei minha voz, como ela fazia comigo. Mansa, firme, cortante:
— Você vai tomar os meus remédios. — sussurrei.
E repeti.
Uma, duas, três vezes.
Dez, no total.
Mais uma, por garantia.
Depois recuei, sentando-me ao lado dele, observando como se pudesse enxergar as portas mentais se abrindo. Pude quase ver as raízes da ideia se enroscando lentamente no tecido mole de seu cérebro. A semente havia germinado. O trabalho estava feito.
Observei-o mais alguns segundos, ainda deitado naquela posi??o ridícula de defunto barato. Depois suspirei e, como um cuspe jogado com raiva:
— Dorme direito, idiota.
Ele me irritava. Respirava alto, dormia como se estivesse ensaiando para um caix?o. Assim que eu terminasse com os médicos, com esses bastardos de jaleco branco, voltaria para cuidar dele também. Uma boa li??o talvez o ensinasse a morrer direito.
Levantei com lentid?o, como quem carrega algo frágil nas costas. Saí do quarto e deixei a porta encostar suavemente — um cuidado que n?o era por ele, mas por mim. N?o gosto de dormir durante o dia. Principalmente com um cadáver vivo roncando ao lado.
Ainda tinha horas até a distribui??o dos comprimidos.
Eu sabia como funcionava: copinhos plásticos com nossos nomes rabiscados a caneta, uma coreografia pregui?osa e repetitiva. Cada um pegava o seu, jogava as pílulas na boca, enchia o mesmo copinho com água — e engolia o que quer que fosse. Alguns tinham dois copos: um para os sublinguais, outro para o resto. Tudo feito sob o olhar distraído de uma enfermeira que se irritava só de estar ali.
E quando chegasse minha vez… eu simplesmente n?o estaria lá.
Estaria escondido no banheiro, ouvindo a porta do armário ranger, o som dos copinhos sendo distribuídos, o silêncio obediente de cada paciente.
E meu colega, o idiota, o sonambulo obediente… tomaria os meus remédios. Talvez eles acalmassem o babaca, já que em mim, eram inúteis.
A enfermeira nem notaria.
Ninguém notaria.
Mas eu notaria tudo.
Caminhava pelos corredores enquanto me perguntava como diabos iria me manter minimamente entretido durante aquele tempo ocioso. A clínica, afinal, n?o era exatamente um parque de divers?es — a menos que sua ideia de divers?o envolva silêncio opressor, paredes bege e o cheiro constante de desinfetante. Havia atividades, claro, mas surgiam como tempestades passageiras: surgiam do nada e sumiam sem aviso, deixando só o morma?o entediante do depois.
Ainda assim, dávamos um jeito.
Tínhamos alguns baralhos.
Cartas. Jogos. Distra??o.
Mas eu ficava muito irritado jogando. Comigo n?o tinha meio-termo: ou ganhava ou queria enfiar as cartas na goela do adversário. Resultado: ninguém queria mais jogar comigo. Possibilidade descartada.
Havia uma biblioteca.
Na verdade, um amontoado de livros escritos por falastr?es otimistas que acreditam ter descoberto a chave da sanidade mental — e resolveram compartilhar com outros imbecis que acham que sublinhar frases de autoajuda é o mesmo que evoluir espiritualmente. Desperdício de tempo. Outra op??o descartada.
E, por fim…
Contar pombas.
Sim, era isso.
Uma das janelas do segundo corredor dava para um telhado de zinco, e ali os ratos de asas se aglomeravam, como se fizessem parte de algum culto secreto. Um ritual de cagalh?es e "crrruu".
Caminhei até a janela, enfiei o bra?o entre as barras e empurrei a veneziana. O tempo estava fechado — nuvens cinzas se acumulando como hematomas no céu. A noite seria fria. ótimo.
O primeiro pombo surgiu.
— Um pombo... — murmurei.
— Crruu crruuu. — disse ele, como se confirmasse.
Seguido pelos passos irritantes em cima do zinco. Tec. Tec. Tec.
— Dois pombos... — continuei.
— Crruu crruuu crruuuu. — responderam em coro.
Tec tec tec tec.
— Três pom—
— Cru—
— Foda-se vocês! — rosnei, puxando a veneziana de volta com tanta for?a que os pombos se espalharam em um voo desengon?ado, suas asas batendo como sacos plásticos ao vento.
A contagem tinha ido para o inferno.
Como alguém consegue viver perto dessas criaturas abomináveis? Malditos ratos com asas. Suspirei fundo e decidi ir até o carteado, mesmo que só para observar. Talvez, só talvez, ver os outros jogando n?o me causasse tanta raiva quanto participar. Atravessei o corredor, virei em outro, empurrei uma porta e entrei na sala principal.
Ali estava ela.
A grande sala de recrea??o.
Mesas.
Cadeiras.
Sofás e poltronas com as molas morrendo.
Prateleiras com livros tristes fingindo ser biblioteca.
O cora??o desse hospício.
E eu, bem no centro dele, prestes a fazer parte de mais um espetáculo involuntário.
Podia-se ouvir um “truco” de um lado, um “uno” do outro, e, entre esses ecos de distra??o barata, os suspiros tristes de quem já desistiu de resistir ao tédio. Um pequeno grupo se reunia num círculo, partilhando emo??es e vivências como se isso fosse lavar roupa suja com palavras suaves. Já tentei participar disso uma vez. Resultado? Pulei em cima de um desgra?ado que insistia em me fazer perguntas. Depois descobri que era um psicólogo. Ainda assim, ninguém tem o direito de fu?ar tanto.
Aqueles que liam n?o pareciam realmente ler. Os olhos mal acompanhavam as linhas, as páginas viravam rápido demais, quase como se tivessem medo de encarar as palavras. Um fingimento coletivo de erudi??o. Acabei encontrando a novata do rosto manchado — aquela com o crucifixo — folheando uma Bíblia gasta com uma ferocidade quase herética. Nem sei se estava lendo ou exorcizando os próprios dedos.
Sentei numa cadeira isolada, perto de uma mesa, mas suficientemente afastada para que ninguém se sentisse confortável ao tentar puxar conversa. Os velhos que jogavam pareciam saídos direto de algum bar de bairro, onde o cheiro de álcool fermentado se mistura com o das mágoas mal lavadas. Nunca tive uma figura paterna bêbada para justificar algum trauma romantico — nunca nem conheci meu pai —, mas meu tio fez quest?o de preencher esse papel com entusiasmo. Batia em mim e na irm? dele com mais fervor do que batia nos próprios filhos.
Devo ter deixado escapar algo disso no rosto, porque alguns olhavam pra trás, disfar?ando. Sorte deles que eu precisava de uma distra??o. Caso contrário, enfileraria cada carta no formato de uma navalha e faria uma cirurgia improvisada nos olhos deles. Mas n?o hoje. Hoje, eu estava calmo.
O tempo passou — ou escorreu, como pus de uma ferida — e o almo?o chegou.
O cardume se moveu mais uma vez, disciplinado e zumbificado.
Fui um dos primeiros a levantar. Nem queria ficar preso no meio da massa, nem ficar por último, como um resto esquecido no prato.
Sentei no mesmo lugar de antes.
As copeiras come?aram a abrir as panelas.
O cheiro — se é que aquilo podia ser chamado de cheiro — quase me derrubou.
Meu est?mago se revirou como se tentasse fugir. Tive que segurá-lo com for?a, curvando o corpo sem parecer fraco. Alguma coisa estava errada. Errada de um jeito novo. Como se os sentidos estivessem... desalinhados. E ent?o a suspeita veio, venenosa e certeira: talvez a retirada das memórias tivesse afetado meu cérebro de forma mais profunda do que imaginei.
Será que danificaram algo?
Será que meu paladar e olfato est?o comprometidos?
E como eu pediria exames? O que eu diria? “Desculpe, doutor, acho que vocês me lobotomizaram enquanto eu dormia e tirar meu olfato no processo.”
Seria um convite à camisa de for?a.
Eu teria que esperar.
Esperar sair desse maldito lugar.
Esperar recuperar o que era meu por direito — minhas lembran?as.
E talvez, só talvez, minha vingan?a.
Neguei novamente comer. Um ou dois dias sem alimenta??o eram um pre?o pequeno para deter os médicos — um pequeno jejum em nome de uma causa maior. Quando todos já estavam servidos, levantei-me e deixei o refeitório. Sem escandalo desta vez.
Queria que achassem que estava controlado.
Garanto que acreditaram.
A monotonia do dia atravessou meu peito como uma lan?a.
Contei mais seis pombos antes de desistir e amaldi?oar todas as gera??es e espécies de aves.
Voltei à mesma cadeira, perto da mesa onde os velhos se reuniam. Fiquei ali, observando seus dedos trêmulos embaralharem cartas manchadas de tédio.
Devo ter cochilado. Acordei com a movimenta??o dos outros se levantando para o jantar. Todos já haviam saído da sala de jogos. E adivinha se algum deles me acordou?
Claro que n?o.
Antes mesmo de cruzar a porta do refeitório, a repulsa me atingiu com for?a. Um soco de dentro pra fora.
A preocupa??o voltou.
E se meu olfato realmente tivesse sido danificado?
Se fosse o caso, eu jurava — sobre tudo que ainda me restava — que teria minha vingan?a.
Mais uma vez saí do sal?o antes que terminassem. Sabia o que vinha a seguir.
Logo depois do jantar, os remédios eram distribuídos.
Teria que correr até o banheiro e me esconder.
O corredor estava vazio. Sem sinal da enfermeira com a bandeja prateada.
ótimo.
Entrei no banheiro e sentei no mesmo vaso de antes, o lugar onde descobri a cicatriz — e a verdade.
Um templo.
Deixei passar uma hora.
Na minha cabe?a, esse seria o tempo exato: o suficiente para que todos tomassem seus comprimidos, trocassem palavras inúteis entre si, e para que os atrasados fossem convencidos à for?a ou no cansa?o.
Contei os segundos como se fossem pedras, um por um, até chegar em 3600.
Garanto que foi t?o preciso quanto um relógio suí?o.
Abri uma fresta na porta.
E ali estava ela.
A enfermeira cruzava o corredor no instante exato, a bandeja prateada nos bra?os, agora completamente vazia.
Meu plano funcionara.
A ideia cravada na mente do idiota funcionara.
Esperei ela sumir de vista e voltei ao meu quarto.
A maioria dos pacientes ainda estava na sala de jogos, aproveitando os últimos momentos de lucidez permitida.
Deitei.
O colega já estava imóvel em sua cama.
Com os olhos fechados, o rosto sereno de um morto temporário.
O sonífero devia ser forte. Misturado com os remédios que eram feitos para me acalmar, agora faziam efeito nele.
Um zumbi útil.
Finalmente.
Agora, eu podia come?ar a planejar o próximo passo.
A ca?ada aos médicos cirurgi?es estava prestes a come?ar.
– Idiota. – Sussurrei, ao ver aquela pose maldita.
Fazia anos desde a última vez que deitei com a mente limpa. Agora, alguns minutos de lucidez bastavam para escancarar as rachaduras do mundo. Pensar com clareza era fácil demais — tanto que acabei me perdendo no próprio pensamento, encarando a tampa da caixa como se ela pudesse responder alguma coisa.
A escurid?o se adensava do lado de fora. O sol já havia se rendido. Forcei minha mente a sair daquele transe, mas algo veio me ajudar: o som da porta se abrindo.
O estalo das dobradi?as soou como um alarme, metálico e urgente. Virei os olhos rápido, como uma águia captando o menor movimento da presa.
Mas o que entrou n?o era presa.
Cinco dedos esqueléticos rasgaram a madeira com unhas finas e descascadas. A pele, murcha e amarelada, parecia prestes a se desprender dos ossos. Cada movimento estalava como galho seco. Eles puxaram a porta até o fim, revelando um corredor de trevas — n?o escurid?o comum, mas um nada denso, quase palpável.
E ent?o as sombras se moveram.
No início, serpenteavam como cobras. Depois, percebi: eram fios de cabelo. Longos, escuros, viscosos, dan?ando como se tivessem vontade própria.
Pinga.
Pinga.
Os bra?os vieram em seguida — magros, ossudos, cobertos por cortes profundos que transbordavam sangue. Ele escorria lentamente, formando po?as densas no ch?o. Os pés, por sua vez, n?o pisavam: eram arrastados, produzindo um ruído áspero conforme as unhas riscavam a madeira, tra?ando linhas tortas como garras marcando território.
A criatura usava o uniforme acinzentado dos pacientes. Mas diferente do meu, o dela estava sujo, rasgado em dezenas de pontos, revelando feridas abertas, carne putrefata e sinais claros de gangrena. Imaginei, por um segundo, o horror que seria seu rosto. Mas quando ela finalmente emergiu por completo da noite, vi que o rosto simplesmente n?o existia. Era inteiramente coberto por aquele véu negro e pulsante — como se a escurid?o em si fosse o rosto.
Ent?o compreendi.
Minhas memórias... n?o foram os médicos que as retiraram. N?o. Eles a alimentavam. Deixavam que ela cravasse as unhas na minha cabe?a, arrancasse partes do meu cérebro e sugasse tudo com o vazio daquele rosto ausente. Meu sangue ferveu. O rosto ficou em chamas. Senti meu corpo se mover por conta própria. Pulei da cama.
Fiquei frente a frente com ela.
Talvez tenha a surpreendido. Devia esperar que eu estivesse dopado, caído, vegetando. Mas ali estava eu: desperto, s?o, consciente.
Ela grunhiu.
E aquele som... n?o se compara a nada neste mundo. Posso, no máximo, descrever a sensa??o que ele trouxe: era como raspar uma faca nos dentes até trincá-los. Como ferir profundamente alguém que você ama. Como... pegar uma tesoura e cortá-lo fora. Agonizante. Insuportável.
Meus ouvidos, acostumados à voz aveludada da psicóloga, n?o resistiram. Caí de joelhos, tapando as orelhas com for?a. O mundo n?o girou. Ele implodiu. E as cinzas ainda queimavam.
Devo ter ficado ali por mais tempo do que durou o grito, porque quando finalmente levantei o olhar...
A criatura já havia ido embora.
Arrastei-me pelo corredor. As luzes revelavam tudo ao redor, mas ela n?o estava em lugar algum. Nem à direita, nem à esquerda. Apoiei as m?os na parede, forcei o corpo para cima com o que me restava de for?a. A respira??o pesada, o corpo mole. A adrenalina que me fizera saltar da cama e enfrentar a criatura se dissipou t?o rápido quanto veio. Agora era só a raz?o — e o medo.
Cambaleei até o banheiro. Meu novo templo. Meu refúgio. Sentei-me no mesmo vaso da sorte, travei a porta com o pé. A janela mostrava lá fora um céu limpo, e o doce, quente sol espiava. Estava ali, como se pronto para me ajudar.
◆◆◆
Levantei do trono improvisado. O descanso havia sido péssimo — passei a noite inteira revendo planos, repensando estratégias, me preparando para deter a coisa. Surgiu uma hipótese nova: e se ela fosse um fantasma? Os pulsos cortados, o andar arrastado... talvez uma paciente que se matou. Essa, sim, era a pior das teorias. Porque fantasmas s?o intangíveis. E se eu socasse um deles, meus punhos passariam direto. Mas, felizmente, eu já tinha a solu??o.
Esperei o horário do café e me juntei ao cardume. Na cuba, chá, bolo de milho, bananas. A náusea veio, mas a engoli com for?a. Sentei na minha posi??o habitual, e ao me virar, avistei o armário — o mesmo de ontem. Abri-o sorrateiramente, sem chamar aten??o. Dentro, dezenas de saches. Peguei vinte de sal e os escondi no bolso.
N?o era o suficiente. Mas mais do que isso levantaria suspeitas.
No almo?o, repeti o movimento. Mais vinte e cinco. Já eram quarenta e cinco no total.
Desde ontem n?o passava pelo meu quarto. Mas sabia que precisava voltar. à noite, durante o jantar, completaria o arsenal. Faltavam só mais vinte pacotinhos de sal... e eu estaria pronto.
Olhei de longe pelo corredor. Minha porta entreaberta. Ela viera mais cedo hoje. Vi os cabelos serpenteantes dan?ando ao vento antes que a madeira se fechasse. Entrou. Talvez meu colega estivesse em perigo. N?o que eu me importasse — ele bem que podia morrer e apodrecer naquela posi??o ridícula. Desgra?ado. Mas essa era minha chance. Pegá-la de surpresa, ocupada com ele.
Corri para o banheiro. Tirei a meia e comecei a abrir os sachês de sal. Despejei o conteúdo com pressa, os gr?os escapando pelas tramas do tecido. Peguei a outra meia e envolvi por cima, apertando tudo com for?a. Demorou mais do que eu esperava, mas no fim... estava perfeita. Dei um nó firme, girei a arma improvisada no ar. Estava pronta. Pronta para matar o espectro.
Ela podia atravessar a meia. Mas o sal, ah... o sal n?o.
Empunhei meu artefato como um cavaleiro da Távola Redonda, marchando para enfrentar o drag?o — ou o fantasma com gangrena. Corri pelo corredor e, ao chegar na porta do quarto, desacelerei. Precisava de silêncio. Se ela gritasse de novo, eu poderia cair de joelhos mais uma vez. Precisava surpreendê-la.
Empurrei a porta devagar. Só o suficiente para espiar o interior.
Vi primeiro o cadáver — ainda dormindo na cama. Inútil até para servir de isca. Mas ela n?o estava sobre ele, rasgando sua cabe?a como esperava.
Ela estava no meu território.
Ajoelhada ao pé da minha cama, corpo curvado, o rosto afundado no colch?o como se cheirasse meus sonhos. Procurando minhas memórias? Sugando meu cheiro? Talvez fascinada pela minha presen?a.
Meu punho apertou o sal.
Ela escolhera o lado errado da guerra.
N?o importava qual fosse a pergunta ou a resposta. Ela estava ali. E eu estava pronto.
Dei quatro, cinco passos vagarosos até chegar em suas costas. A coluna saltava para fora como espinhos calcificados, rasgando o tecido das roupas e sangrando a pele já podre. Seus joelhos dobrados pareciam prestes a colapsar, a decadência infiltrada até os ossos.
Girei minha arma improvisada no ar, aumentando ao máximo o impacto. Ela pode ter sentido minha presen?a — ou talvez o peso da senten?a que carregava — pois virou o rosto na minha dire??o.
Era o momento perfeito.
Acertei-a com toda a for?a que encontrei.
Seu corpo voou como boneca de pano, estatelando-se no ch?o. Os bra?os finos e sangrentos se esticaram como galhos mortos, e aquele rosto — o rosto sem rosto — era um abismo vertiginoso. Fiquei tempo demais encarando o vazio, hipnotizado pelo horror.
Mas me recompus.
Bati mais algumas vezes, cada golpe mais violento que o anterior. Evitei o centro da cabe?a com medo de perder minha arma dentro daquele nada, mas a lateral do cranio levou boas pancadas. Ela resistia mais do que o esperado. Isso só inflamava minha raiva.
Eu batia. E batia. Como se fosse o fim do mundo — ou o come?o dele.
Um dos golpes foi t?o forte que a meia externa rasgou. A segunda se soltou, voou como um pássaro ferido, subiu girando alguns metros no ar e caiu sobre minha cama, espalhando sal por todos os cantos. Parecia neve. Pelo menos... é assim que imagino a neve.
Pulei na cama como um gato, feroz e decidido. Antes que minhas m?os alcan?assem a arma caída entre os len?óis, vi algo que congelou minha fúria por um instante: uma bíblia velha, aberta em algum salmo, repousava sobre o colch?o.
Por um segundo, questionei — a criatura era religiosa? Existia algum deus dos fantasmas? Mas n?o havia tempo para dúvidas. Ela morreria de novo. E encontraria o fim que merecia.
– So...corro.
A palavra saiu torta, arranhada, mais um gemido do que uma súplica. Virei os olhos para o ch?o: ela se arrastava como um verme ferido, o corpo retorcido, a pele rasgada. Na m?o esquerda, algo brilhou — uma pequena cruz prateada, faiscando como uma estrela nas trevas.
Saltei da cama, aterrissei sobre suas costas para impedi-la de continuar. Ela gritou de dor, mas n?o como antes — a voz, antes um metal enferrujado rasgando o ouvido, estava mais humana agora, mais... fraca.
Segurei seus cabelos negros, que haviam perdido o movimento espectral e agora repousavam inertes no ch?o. Virei seu rosto à for?a, querendo encará-la nos olhos antes de destruí-la — queria que visse quem era seu carrasco.
Mas ali, onde antes havia apenas vazio, algo havia mudado.
O abismo em seu rosto se dissipava. A escurid?o total recuava lentamente, como tinta sendo lavada da pele. A bochecha esquerda ainda carregava uma mancha escura, como um hematoma espectral, mas o restante...
Era um rosto. De mulher. Jovem. Machucada. Humana.
Era ela.
Eu já tinha visto aquele rosto vezes demais para ter dúvidas. A mesma mancha na bochecha, a mesma express?o que me assombrava até quando eu dormia. A raiva subiu como um incêndio e, sem pensar, chutei seu rosto contra o ch?o.
Mas n?o parei por aí.
Ela n?o era mais um fantasma. Era carne. E eu ainda tinha punhos.
Soquei. Chutei. Sem ritmo, sem piedade. Cada golpe levava embora um peda?o do meu ódio — por ela, pelos médicos, pelos pacientes, por esse lugar imundo. Pelos pombos. Pelo cheiro da comida. Por tudo que fizeram comigo e por tudo que me tornei.
Ela era a maldita soma de tudo isso. E agora, seria a puni??o.
Quando enfim me senti satisfeito, soltei o que restava dela no ch?o, coberta de roxo, sangue e ossos mal posicionados. Um dos bra?os caía de lado, numa curva impossível. Estava feito. E por algum motivo, eu estava mais leve.
Dei dois passos para trás e bati em alguém.
Girei o corpo, o cora??o ainda em fúria, e dei de cara com o idiota do meu colega de quarto. Ele estava ali, em pé, olhos arregalados, como se tivesse acordado de um coma no pior momento possível.
Tentei falar. Explicar. Mas a garganta secou. As palavras trope?avam uma nas outras como bêbadas num beco escuro.
– Ela... eu... foi um... acidente... me atacou... memórias...
Mas nada disso fazia sentido.
Nem pra ele.
Nem pra mim.
Ele era um homem magro, fei??es ossudas e retorcidas, mais alto do que lembrava, com poucos fios loiros se agarrando ao couro cabeludo como se n?o soubessem que deviam ir embora. Nenhuma palavra saiu de sua boca. Até que seu olho direito — seco, esbranqui?ado — come?ou a jorrar sangue.
Recuei.
Pontos vermelhos brotavam por sua roupa cinza, como pequenas flores apodrecidas se abrindo no tecido. A mancha crescia com vida própria, lambendo os panos, invadindo-o. Ele n?o reagia. Só olhava.
Olhou para minha m?o.
Lentamente, como quem contempla uma relíquia sagrada.
Segui seu olhar.
Entre meus dedos, um parafuso grande. O mesmo que arranquei da cadeira do refeitório com uma colher, dias atrás. Mas… por quê?
Ele olhou para o próprio tronco, o buraco cravado no peito como uma flor de ferro.
– Você dorme daquele jeito estranho... isso me irrita. – falei, confuso.
Ele fez que sim com a cabe?a.
– Foi com você...? Que eu surtei?
Nova confirma??o. Um movimento de cabe?a lento, quase gentil.
Soltei o parafuso. Ele caiu no ch?o com estalos secos, quicando até mergulhar na po?a de sangue da mulher caída. Ela ainda gemia, cuspindo peda?os de dor e sangue, se contorcendo como um verme esmagado.
Meu colega olhou para trás de mim, para o armário.
Virei devagar.
A quina estava suja, um vermelho escuro escorria de lá como um lembrete sutil de outro corpo. E no ch?o, uma nova po?a, recente, pulsante, quase viva.
Mais alguém.
Ou mais uma lembran?a.
– Eu te ataquei e você... você me empurrou? – Levei os dedos à cicatriz na nuca. Ela latejava como um cora??o ferido. Estava se abrindo de novo. Ao nosso lado, a novata — ou a criatura, sei lá — come?ou a ter espasmos. – Ela é um monstro.
Ele negou com a cabe?a, calmo como quem já sabia de tudo.
E ent?o olhou para mim.
– Eu? Eu n?o sou um monstro! A culpa é sua! Você só tinha que dormir direito! – Gritei, minha respira??o disparando como um motor quebrado. – E ela só precisava cobrir essa mancha ridícula! E agora? Agora a gente tá morto, é isso?
Ele confirmou com um aceno seco.
Morto.
Virou o rosto para o armário.
Segui o olhar.
Abri as portas. A dele estava vazia. A minha... cheia de roupas femininas. Roupas que n?o eram minhas. Que nunca foram. Que n?o deveriam estar ali.
Olhei pra trás.
Meu colega já estava indo para a cama, como se nada tivesse acontecido. Deitou com a tranquilidade de um velho acostumado ao próprio fim. Entrela?ou os dedos no peito, encarou o topo da caixa, puxou o len?ol até o rosto. Parecia... em paz. Como se tudo aquilo fosse uma escolha.
N?o aceitei.
Ele me matou.
Corri até a cama e arranquei a coberta com for?a. Mas o corpo...
N?o estava mais lá.
A cama estava vazia.
Vazia.
Olhei para a minha cama. Parecia um convite. Uma porta entreaberta para algum lugar. Deveria eu deitar na posi??o fúnebre e acompanhar ele até o pós-vida?
Céu ou inferno... ele, com certeza, desceu. Mas eu? Eu aguentaria viver ao lado de esnobes anjos? Minha ira um dia me condenaria lá em cima, disso eu tenho certeza. N?o posso ir. Ainda n?o. Preciso ficar. Preciso aliviar essa raiva — toda ela — antes de partir.
Agachei-me ao lado dela.
Ela havia parado de tremer. Os olhos abertos, opacos. Os lábios se moviam como se buscassem uma palavra, mas nada saía. Nenhuma salva??o. Nenhuma súplica.
Foi ela quem me tirou da ilus?o, quem rasgou a mentira que me mantinha seguro. Ela trouxe a realidade de volta. E por isso, ela tinha que pagar.
Minhas m?os foram ao seu pesco?o. Senti o corpo enrijecer sob o toque gelado dos meus dedos. Ela tentou erguer o bra?o bom — tentou — mas n?o subiu o suficiente. N?o tinha for?a. Nenhuma chance.
Apertei.
Com tudo.
Quando parou de se mexer, segurei por mais alguns segundos. Só para garantir. Até sentir o corpo esfriar. O bra?o caiu. A mancha... ainda estava ali. Intocada.
N?o seria fácil erradicar minha raiva. Mas havia muitos pacientes nessa clínica.
E quando eles acabassem, ainda restariam os médicos.
Finalmente, um remédio que me acalmava.