home

search

ESPELHO

  O som das chaves girando pela primeira vez na fechadura fez eco no corredor estreito. Era fim de tarde, e a luz morta do sol se espremia entre os prédios ao redor, lan?ando sombras compridas pela janela empoeirada da sala.

  O novo morador do 302 respirou fundo. O apartamento tinha cheiro de tinta barata misturada com mofo antigo — um lugar que fora limpo apenas para parecer limpo. Ainda assim, havia algo reconfortante naquela mobília modesta, na disposi??o econ?mica dos c?modos, como se o ambiente tivesse sido moldado para alguém como ele.

  O síndico, um homem calvo e educado demais, n?o ficou por muito tempo. Após entregar as chaves e fazer uma piada sem gra?a sobre o "charme vintage" do prédio, desapareceu pelo elevador rangente. Nenhuma men??o ao apartamento vizinho. Nem ao espelho.

  O novo morador percorreu o local em silêncio. A sala mal comportava um sofá, uma estante baixa e uma mesinha quadrada. Havia um espelho fixo na parede ao lado da estante — daqueles antigos, com moldura simples e algumas manchas na superfície, como ferrugem em prata. Nada chamativo.

  O quarto era um espa?o estreito com cama de solteiro, armário encostado na parede oposta e cortinas pesadas que bloqueavam a vista da rua. O banheiro, minúsculo. A cozinha, um corredor com azulejos rachados e uma pequena geladeira que fazia barulho ao respirar.

  Ele se sentou na beira da cama. A sensa??o era de que o apartamento era menor por dentro do que por fora. Como se as paredes fossem um pouco mais próximas do que deveriam ser. Como se respirassem junto com ele.

  A noite caiu devagar. N?o havia muito o que desempacotar. Algumas roupas, um caderno velho, um rádio portátil e uma caixa com objetos que ele n?o abria havia meses. Empurrou tudo para debaixo da cama e se encolheu sobre os len?óis duros.

  O silêncio pesava mais do que o teto. E o prédio parecia inteiro conter o f?lego.

  Na penumbra, ele olhou uma última vez para o espelho. E mesmo ali, sozinho, sentiu que n?o estava.

  Acordou no meio da madrugada com a sensa??o de que alguém respirava perto demais. O quarto estava escuro, quase sem forma, e por um momento pensou que fosse apenas um resto de sonho — o tipo que se dissolve rápido, antes que se possa entender o que era.

  Mas ent?o ouviu de novo.

  Um som abafado, ritmado. Quase organico. Como o ranger úmido de algo em movimento. Franziu a testa. Estava vindo da parede ao lado. O apartamento 303.

  Ficou sentado na cama por alguns minutos, ouvindo em silêncio, como se tentar identificar fosse errado. Os sons continuavam: uma cadência irregular, sussurros e algo que, por mais que tentasse negar, soava como prazer.

  Sentiu o rosto esquentar.

  Tentou ignorar. Deitou-se de novo, puxou o len?ol até o pesco?o. Mas o som ainda estava lá, murmurando no fundo do silêncio, como um segredo sendo contado muito perto.

  Virou-se para o lado oposto, encolhido. Mesmo assim, ouvia.

  Sentou-se outra vez, contrariado. O quarto parecia menor. O som, maior. Respirou fundo e lan?ou um olhar à parede. Depois, ao espelho. Ele estava fixado ali desde que chegara, ao lado da cama, quase de frente para a parede de onde o som vinha. N?o parecia ter nada demais... mas era ali que o ruído soava mais forte.

  Sentiu uma onda de vergonha ao pensar em se aproximar. Por que faria isso? Era invasivo. Errado.

  Mas se levantou mesmo assim.

  Andou em silêncio, pés descal?os no ch?o gelado. Encostou-se de leve à parede, ainda tentando manter uma distancia segura do espelho. Mas o som — os gemidos — estavam ali. N?o era imagina??o.

  Por um instante, sentiu-se um criminoso. Um espi?o por acaso. Olhou para o espelho, mas viu apenas seu próprio reflexo, pálido sob a luz fraca.

  Voltou para a cama sem dizer nada, com o rosto levemente corado e um inc?modo no peito, como se tivesse presenciado algo que n?o deveria. Virou-se para o lado e for?ou os olhos a fechar. Precisava dormir. Esquecer.

  O som cessou pouco depois.

  Mas ele ficou acordado ainda por muito tempo, encarando o teto.

  O segundo dia come?ou sem alarme.

  Ele acordou com a luz atravessando as frestas da persiana, cortando o quarto em faixas amarelas e poeirentas. O colch?o ainda era estranho ao seu corpo, o len?ol áspero, o cheiro do quarto... neutro demais, como se alguém tivesse tentado apagar qualquer vestígio de quem ali viveu antes.

  Na cozinha, abriu armários que pareciam nunca ter sido usados. Tudo estava no lugar, impecável — talheres em fileiras organizadas, pratos brancos, copos de vidro idênticos. Havia até uma caneca com um pequeno lascado na borda. Um defeito proposital? Um toque de humanidade deixado ali para acalmá-lo?

  Fez café, comeu p?o seco e passou um tempo encarando a parede da sala. O espelho refletia a cozinha ao fundo, e por um momento ele achou ter visto movimento. Quando virou, n?o havia nada.

  Passou o dia saindo e entrando de c?modos. Trocou os quadros de lugar, experimentou posi??es diferentes para o sofá — tentando encontrar algum angulo que fizesse o espa?o parecer... dele.

  Mas n?o importava o que fizesse, tudo continuava parecendo um cenário montado.

  Pela tarde, saiu para uma caminhada e se perdeu nas ruas por algumas horas. Evitou conversar com os vizinhos, manteve a cabe?a baixa e os passos curtos. Ao voltar, subiu os três andares de escada sem pensar muito, os degraus rangendo sob os pés.

  No corredor do terceiro andar, hesitou por um segundo.

  Seus olhos pararam na porta do 303.

  A madeira era igual às outras, mas parecia mais... antiga. Os números estavam levemente tortos, como se alguém os tivesse batido ali com pressa. Ele ficou olhando por tempo demais, sem saber exatamente por quê. Nenhum som. Nenhum indício de vida.

  E ent?o, como se acordasse de um devaneio, girou a chave do 302 e entrou.

  Dentro, sentiu novamente o cheiro do lugar. Um cheiro que n?o lembrava ter sentido antes — algo quase doce, mas metálico.

  Talvez só estivesse cansado.

  Tomou banho, preparou algo leve, ligou a TV. O som abafado da programa??o lhe fez companhia. Mesmo sem prestar aten??o, deixou o volume baixo, só pra n?o escutar o silêncio.

  E quando a noite caiu, hesitou antes de apagar as luzes.

  Havia algo na escurid?o que n?o sentia há tempos.

  Algo que...

  esperava.

  Ele acordou de novo.

  Dessa vez, n?o foi por causa de um sonho estranho ou da ansiedade da mudan?a. Acordou porque estava esperando por isso. Ainda que n?o admitisse, seu corpo parecia saber antes dele.

  O quarto estava escuro. A única luz vinha das frestas da persiana, recortando a penumbra com tiras pálidas de neon da rua. Ele ficou ali deitado por alguns minutos, olhos presos no teto, tentando convencer a si mesmo de que nada ia acontecer. Que a noite anterior fora apenas um acaso.

  Mas ent?o ouviu.

  Fraco, abafado. Um gemido. Familiar demais agora para ser confundido com qualquer outra coisa. Veio da parede fina ao lado da cama — a parede que dava para o 303.

  Engoliu seco. Seu cora??o acelerou, mas n?o se moveu. Queria ignorar. Fingir que n?o estava ouvindo. Mas quanto mais tentava negar, mais o som parecia se infiltrar em sua mente — molhado, íntimo, pulsante.

  Outro gemido. Mais longo. Mais... entregue.

  Se sentou lentamente. A vergonha ainda estava lá, assim como o inc?modo — mas algo dentro dele come?ava a mudar. Um tipo estranho de expectativa. De tens?o.

  Levantou-se da cama e foi até o canto onde a parede dividia o apartamento. O espelho ainda estava ali, discreto, do tamanho de um corpo humano, fixado na parede fina. N?o havia nada de especial nele. Era só um espelho de parede. Um dos tantos detalhes que já vieram com o apartamento.

  Mas os sons... vinham sempre daquele lado.

  Olhou ao redor, como se alguém pudesse vê-lo, e encostou o ouvido na parede, bem ao lado da moldura.

  Dessa vez, n?o precisou esperar tanto.

  Primeiro, estalos — de cama, talvez? Depois, o som abafado de respira??o ritmada, rápida, e por fim um novo gemido. Longo, arrastado, como se a pessoa estivesse à beira do êxtase.

  Arregalou os olhos. Deu um passo para trás.

  Era errado. Invadir a privacidade de alguém assim, mesmo que por acidente... mesmo que só ouvindo. E ainda assim... havia algo naquele som que o puxava. Como se a parede sussurrasse seu nome entre os gemidos.

  Voltou para a cama em silêncio. Olhou para o espelho por um tempo, ent?o o cobriu com a toalha de rosto que estava jogada na cadeira.

  N?o queria olhar para o próprio reflexo naquele momento.

  Cobriu-se até o pesco?o e fechou os olhos com for?a, como se pudesse apagar a noite.

  Mas mesmo nos sonhos, os sons o seguiam.

  A manh? chegou cinzenta, abafada. Nem o sol ousava entrar direito pelas janelas.

  Ele acordou tarde, o corpo mole, como se tivesse passado a noite inteira em alerta — e, de certo modo, havia mesmo.

  Sentou-se à mesa da cozinha com uma xícara de café frio e tentou se concentrar na tela do notebook, em qualquer coisa que o distraísse. O aluguel, o novo endere?o para atualizar nos cadastros, emails n?o lidos... Mas as palavras escorriam pelos olhos como se fossem água. Nada fixava.

  Os sons da noite anterior ainda reverberavam em sua mente — como se sua cabe?a fosse um quarto vazio onde o eco n?o parava.

  Pegou o celular e procurou nos aplicativos de som ambientes, barulhos brancos, ruídos de chuva. Colocou os fones de ouvido e tentou se afundar na bolha artificial que criou para si.

  Funcionou por um tempo.

  Mas logo se pegou olhando de relance para o espelho.

  A toalha que havia usado para cobri-lo estava jogada no ch?o. Tinha certeza de que a deixara ali... n?o tinha? Talvez ela tivesse escorregado durante a noite. Talvez ele mesmo, num surto de culpa ou impulso, tivesse removido sem perceber.

  Suspirou.

  O espelho devolveu o olhar, silencioso, imóvel, inocente. Um reflexo qualquer.

  à tarde, tentou sair. Andou até um mercado da esquina, comprou p?es, enlatados e um desodorante que n?o precisava. O mundo lá fora estava vivo, movimentado. Mas parecia distante. Irreal.

  No elevador de volta, seus olhos pousaram no número “303”.

  Ensure your favorite authors get the support they deserve. Read this novel on the original website.

  A porta do apartamento estava fechada como sempre. Nenhum som. Nenhum sinal de vida.

  Pensou em tocar. Só para... checar. Confirmar se havia alguém ali. Mas desistiu.

  No 302, largou as sacolas sobre a bancada da cozinha e caminhou até o espelho. N?o disse nada. N?o fez nada. Apenas ficou ali, parado, observando.

  A noite caiu cedo, engolindo as janelas com sua escurid?o pastosa.

  Ele se deitou mais cedo do que o normal, mas n?o dormiu. Ficou virando de um lado para o outro, esperando.

  Nada.

  Por um tempo, pensou que tinha acabado. Que talvez fosse apenas uma vizinha recebendo uma última visita antes de viajar, ou se mudar, ou morrer. A ideia o incomodou. Um desconforto que roía por dentro.

  E quando finalmente estava prestes a pegar no sono...

  Ouviu.

  Fraco. Quase imperceptível. Mas estava lá.

  O gemido.

  Mais contido, talvez... mais lento.

  Ele se sentou na cama, o peito apertado.

  Sabia que n?o devia. Sabia que aquilo estava se tornando algo... errado. Mas n?o se mexeu.

  N?o ainda.

  Ficou apenas ouvindo.

  A mente formava imagens, construía cenários que ele mesmo se envergonhava de imaginar. Mas n?o conseguia parar.

  Era como se algo naquela parede o chamasse.

  Como se ele fosse necessário para completar aquela cena.

  Dessa vez, ele n?o resistiu.

  O som era mais forte. Mais íntimo.

  Mais... real.

  Estava escuro, e a única luz que iluminava o apartamento vinha de um poste do lado de fora, filtrada em faixas pelas persianas. O relógio piscava 2h13 da madrugada.

  Ele levantou da cama sem pensar.

  Pés descal?os no ch?o gelado, o suor frio escorrendo pelas costas.

  Caminhou até a parede.

  N?o a do espelho, mas a parede lateral.

  A que separava o 302 do 303.

  Encostou-se com cuidado.

  O som vinha dali. Baixo, abafado, mas claro — os mesmos gemidos. Ondulados, envolventes.

  Sua testa encostou no concreto.

  A parede parecia morna.

  Respirava.

  Fechou os olhos.

  Sentiu um arrepio subindo pela nuca.

  O som era quase um sussurro agora, como se alguém estivesse ao seu lado, murmurando coisas sem palavras.

  Um estalo seco ecoou do outro lado.

  Ele se afastou de súbito.

  O silêncio voltou.

  Por um instante, ficou imóvel no meio da sala, olhando para a parede como quem encara um animal selvagem adormecido.

  Voltou para o quarto. Sentou-se na beirada da cama, ainda de costas para o espelho.

  Seus pensamentos se atropelavam — n?o era só desejo. Era curiosidade. Era angústia.

  Era uma fome que n?o entendia.

  Levantou-se novamente, foi até a cozinha e encheu um copo d’água.

  As m?os tremiam.

  No caminho de volta, estacou diante do espelho da sala.

  Ficou ali parado, encarando o próprio reflexo.

  Se viu pálido. Suado. Perdido.

  E atrás de si, apenas o quarto escuro.

  Um ruído.

  Quase como um solu?o abafado.

  N?o dele.

  Do outro lado.

  Ele se virou, lentamente.

  Nada.

  A mesma parede silenciosa.

  Mas agora... agora ele queria ouvir de novo.

  Mais forte.

  Mais claro.

  Mais perto.

  Na manh? seguinte, n?o houve som.

  Nenhum.

  O silêncio parecia zombar da sua ansiedade, como se a parede esperasse que ele tomasse a iniciativa.

  E ele tomou.

  Passou a manh? andando de um lado para o outro, inquieto.

  Esbo?ou fazer uma liga??o — para quem? — e desistiu.

  Abriu a internet, pesquisou sobre "vizinhos barulhentos", depois “sons durante a noite”, depois… “gemidos que n?o vêm de lugar nenhum”.

  Fechou o navegador.

  Sentia-se patético.

  Mas à tarde, saiu de casa.

  Voltou com algo simples: um copo de vidro.

  Velho truque, usado em filmes — encostar o copo na parede e ouvir.

  Fez isso.

  Nada.

  Tentou de novo à noite.

  Esperou a primeira hora da madrugada, imóvel na cadeira, os olhos vidrados na parede.

  Nada.

  Quase dormindo, foi despertado por um único som — abafado, curtíssimo.O copo caiu de sua m?o.

  Ele congelou.

  Foi até o quarto, trêmulo.

  Apoiou a testa na parede.

  Tentou escutar com o próprio ouvido.

  Silêncio.

  Mas ali, no ch?o ao lado da cama, olhou o espelho de parede.

  Aquele espelho que nunca havia comprado, nunca instalara — estava ali desde o come?o.

  Sempre esteve ali.

  Ele n?o se aproximou.

  Mas passou os olhos por ele.

  Na superfície polida, seu reflexo parecia... mais atento que o normal.

  Mais concentrado.

  Como se escutasse algo que ele ainda n?o escutava.

  Voltou para a sala, nervoso.

  Deitou-se no sofá.

  A noite o engoliu devagar.

  E pela primeira vez, o som voltou.

  Mais baixo, mais ritmado.

  N?o sensual.

  N?o humano.

  Quase... animal.

  Durante o dia, nada parecia fora do lugar.

  O sol atravessava a fresta das cortinas como de costume, recortando feixes de luz que morriam nas paredes amarelas. Ele passou a manh? tentando manter-se ocupado — limpou pratos já limpos, organizou as gavetas, até esfregou o ch?o da cozinha como se ali morasse a resposta.

  Mas a pergunta era outra.

  Sempre era.

  Na hora do almo?o, comeu pouco.

  E sempre que desviava o olhar, ele voltava para o espelho.

  Desde quando aquele objeto dominava o ambiente assim?

  Era só um espelho.

  Preso na parede desde o início.

  Simples, moldura fina, altura média.

  Nada de mais.

  Mas parecia... sugerir.

  Quando a noite caiu, ele tentou n?o pensar.

  Tentou n?o esperar.

  Mas o corpo já havia aprendido a tens?o daquele horário.

  Deitou-se.

  Virado para o espelho.

  Primeiro veio o silêncio.

  Depois, algo rastejando dentro dele.

  O som.

  Baixo.

  Intermitente.

  Mas presente.

  Um gemido tímido, talvez duas paredes além.

  Talvez n?o.

  Era difícil localizar.

  Ele se sentou na beirada da cama, hesitante.

  Levantou-se devagar, como se estivesse quebrando um voto íntimo.

  Deu três passos.

  Parou diante do espelho.

  N?o era como antes.

  Dessa vez, ele n?o queria apenas olhar.

  Queria ouvir melhor.

  Encostou a palma da m?o, depois o ombro, o rosto.

  A superfície estava fria.

  Ent?o, colocou o ouvido contra o vidro.

  Ficou ali.

  Quieto.

  E ent?o ouviu.

  Os sons, ainda tênues, tornaram-se mais nítidos.

  N?o vinham de dentro do prédio, nem do corredor, nem debaixo da porta.

  Vinham dali.

  De dentro do espelho.

  Ou através dele.

  Ele n?o se afastou.

  Nem reagiu.

  Apenas... permaneceu.

  Sentia-se quente, excitado, mas também envergonhado.

  E ainda assim, incapaz de recuar.

  Os olhos estavam fechados.

  A respira??o, descompassada.

  No fundo, ele sabia: tinha cruzado um limite.

  E n?o havia mais volta.

  No come?o, ele acendia apenas uma luz fraca na sala.

  Luz demais o envergonhava.

  Luz demais fazia parecer errado.

  Mas agora… a vergonha n?o importava tanto.

  Todas as noites, o mesmo gesto: desligava tudo, menos o abajur perto da parede.

  O espelho parecia mais vívido assim.

  Mais profundo.

  Mais verdadeiro.

  Deitava-se no colch?o — às vezes nu, às vezes com as roupas pela metade — e esperava o primeiro som.

  N?o era sempre imediato.

  Havia noites de silêncio, de frustra??o.

  Mas mesmo no silêncio, ele voltava ao espelho.

  Sempre voltava.

  Encostava o ouvido, deixava a respira??o aquecer o vidro.

  Ficava ali até o som vir.

  E quando vinha, ele se entregava.

  Era diferente agora.

  Mais fundo.

  Mais animalesco.

  Ele já n?o tentava entender se era real.

  Se era uma vizinha.

  Se era um truque da mente.

  N?o importava.

  O som era real o suficiente para provocar.

  Real o suficiente para preencher.

  A cada noite, deixava-se levar mais.

  M?os trêmulas, boca entreaberta, olhos semiabertos tentando enxergar algo que n?o estava ali — ou estava e ele n?o sabia como ver.

  Em algumas noites, falava sozinho.

  — Eu sei que está aí... Você também me ouve, n?o é?

  E quando o prazer explodia, era como se algo do outro lado ouvisse e respondesse.

  Como se os gemidos ficassem mais altos.

  Mais... íntimos.

  Mais sincronizados com os dele.

  Ele terminava sempre com o rosto colado no vidro, arfando.

  Sentia-se sujo, perdido, mas satisfeito.

  Por segundos, talvez minutos.

  Depois vinha o vazio.

  A sensa??o de que o som havia sumido.

  De que ele estava sozinho.

  Sozinho, nu, colado a uma parede fria, com o próprio reflexo o observando em silêncio.

  Mas toda noite, voltava.

  Porque toda noite, algo do outro lado também parecia estar esperando.

  Ele já n?o sabia que dia era.

  A luz do sol entrava pelas frestas, mas n?o trazia mais clareza.

  O relógio da parede — um detalhe bonito que ele elogiara no primeiro dia — havia parado em algum momento.

  O ponteiro marcava três e meia.

  Era sempre três e meia.

  Na geladeira, havia comida vencida.

  Alguns copos sujos na pia.

  E a toalha do banheiro estava no ch?o, molhada desde sabe-se lá quando.

  Ele n?o saía.

  N?o queria sair.

  Tudo que precisava estava ali.

  O som. O espelho. O toque.

  O ritual.

  Só que agora... havia algo de diferente.

  N?o era só à noite.

  Come?ava a escutar durante o dia.

  Pequenos sussurros, quase imperceptíveis.

  Fragmentos do prazer que viera na noite anterior — ou da próxima?

  Sentia arrepios ao passar perto do espelho.

  Chegou a tapá-lo com uma toalha, tentando fingir que aquilo era apenas um objeto comum, mas foi pior.

  O silêncio ali atrás era ensurdecedor.

  O abismo que se formava atrás da toalha parecia chamá-lo com mais for?a.

  Ele arrancou a toalha duas horas depois, ofegante, suado, como se tivesse sobrevivido a um afogamento.

  Voltou a se deitar perto da parede.

  Voltou a encostar o ouvido.

  Mesmo sem som, ficava ali. Esperando.

  Come?ou a esquecer seu nome.

  Come?ou a esquecer rostos.

  Nem sabia mais se alguém o esperava fora dali — se alguém algum dia esperou.

  Lia mensagens antigas no celular, mas n?o lembrava de ter escrito nenhuma delas.

  Havia uma chamada perdida de um número salvo como "M?e", mas ele n?o teve coragem de retornar.

  Desligou o aparelho. Jogou dentro da gaveta.

  A única coisa que queria escutar… era do outro lado daquela parede.

  No come?o, os sons bastavam.

  O prazer era pleno, quase sagrado.

  Mas agora, era uma tortura.

  Como alguém que bebe água salgada: quanto mais consome, mais sede sente.

  Ele precisava vê-la.

  N?o bastava mais o som abafado entre a parede.

  Nem o reflexo esmaecido no espelho, nem a imagem mental construída nos delírios noturnos.

  A mulher era real. Ela existia. Estava ali, a poucos centímetros.

  Podia ouvi-la, quase senti-la — ent?o por que n?o podia vê-la?

  Ficava horas diante do espelho.

  Tentava alinhar o olhar com a parede.

  Imaginava os c?modos, o layout, a posi??o da cama.

  Sabia, com uma certeza absoluta e desesperada, que ela se deitava exatamente do outro lado.

  Uma vez, bateu na parede com os nós dos dedos.

  Três toques secos.

  Silêncio.

  Depois de alguns segundos, um estalido quase imperceptível — ou teria imaginado?

  A resposta foi um gemido arrastado, fundo, úmido.

  Mais real do que qualquer coisa que já ouvira.

  Aquilo bastou para levá-lo ao ch?o, a testa encostada contra a parede fria.

  Se masturbou ali mesmo, ajoelhado, sussurrando o nome que imaginava ser dela.

  Mas n?o bastava.

  Ele precisava ver.

  Come?ou a investigar discretamente.

  Subia e descia as escadas para verificar a porta do 303.

  Nunca ninguém entrava.

  Nunca ninguém saía.

  Certa tarde, encostou o ouvido contra a madeira.

  Nada. Nem um som. Nem um sussurro.

  Quis girar a ma?aneta.

  Parou no último segundo.

  Naquela noite, sonhou com a porta aberta.

  O apartamento estava escuro, mas ele via perfeitamente.

  Havia algo no ch?o. Corpos? Almofadas? Era impossível dizer.

  No centro, ela o esperava, nua, deitada de costas, como sempre imaginou.

  Acordou com o rosto suado e a cueca encharcada.

  Foi direto para o espelho.

  Olhou fundo, esperando que algo acontecesse.

  Apenas seu reflexo — magro, cansado, mas sorrindo de leve.

  No dia seguinte, comprou ferramentas.

  Era tarde. O tipo de noite onde o mundo parece menor, apertado, como se o escuro encurtasse os corredores e engolisse o ar.

  E ela gemia.

  Hoje, diferente.

  Mais alto.

  Mais perto.

  Mais molhado.

  Ele já estava nu quando encostou na parede.

  Os dedos tremiam. A pele queimava.

  Encostou a testa no gesso, arfando.

  Ela estava chamando por ele. Tinha certeza.

  Ganhou for?a de onde n?o havia.

  Levantou de um salto. Foi até a porta.

  Esqueceu a camiseta, os chinelos, o bom senso.

  O corredor do prédio parecia infinito — uma espiral de luzes fracas e paredes mofadas.

  Parou diante da porta 303.

  Ela era simples.

  Fechadura velha. Madeira gasta nas bordas.

  Ela estava ali. Do outro lado. Esperando.

  Bateu com o punho.

  Nada.

  Girou a ma?aneta. Trancada.

  Bateu de novo. E de novo. Mais forte.

  — Abre — sussurrou, a voz quase infantil. — Por favor... abre.

  Nada.

  A m?o escorregou até a ma?aneta, mas ele n?o girou. Apenas ficou ali, respirando fundo. Queria ouvir. Precisava. Um gemido, um sussurro. Qualquer coisa. Mas o 303 agora estava calado.

  Os olhos desceram lentamente até a sacola de plástico no ch?o ao lado. Dentro, ainda estavam as ferramentas que comprara sem pensar muito. Pegou a chave de fenda. A menor delas. As m?os tremiam, suadas, mas firmes. Enfiou a ponta entre a fresta da porta e a moldura, com movimentos secos. O som metálico bateu no silêncio como um grito abafado.

  Fez for?a.

  A fechadura gemeu.

  — Por favor... — disse de novo, agora com a voz rouca, quase suplicante.

  Outro estalo.

  Mais for?a.

  Com um estalo mais seco, a porta cedeu. Entreaberta. Um sopro de ar velho escapou por ela. Ele empurrou com o ombro.

  A entrada do 303 era escura. O cheiro era estranho.

  Sem pensar, ele entrou.

  A ma?aneta estava fria.

  Fria como metal esquecido sob o peso do tempo.

  Ele sussurrou contra a madeira:

  — Me deixa entrar...

  A porta cedeu como se estivesse esperando por ele. O apartamento 303 o engoliu.

  O ar ali dentro era doentio — abafado, viscoso. N?o havia janelas abertas, nem luz natural. Tudo era um útero de podrid?o e silêncio. Mas os gemidos... eles ainda ecoavam. Fracos, como uma lembran?a antiga.

  Ele deu passos lentos. Reconhecia o espa?o, e ao mesmo tempo n?o. As propor??es estavam erradas, as sombras erradas, as paredes pareciam se apertar ao redor de si.

  Passou por um corredor longo demais, entrou num quarto onde a cama era apenas um colch?o podre e rasgado, e o ch?o estava decorado com carne que um dia foi gente. Olhos secos.

  Mandíbulas tortas. M?os ainda agarradas aos len?óis.

  Outros c?modos revelavam mais horrores. Corpos sobrepostos. Membros sem dono. Roupas rasgadas coladas à carne pela putrefa??o. Cada canto parecia uma confiss?o feita tarde demais.

  Tentou voltar.

  Tentou correr.

  Mas o apartamento se estendia. Se repetia. As portas se embaralhavam. Tudo o levava de volta para o centro.

  Até que trope?ou e caiu. De joelhos, sentiu o ch?o pulsar. Sentiu tudo pulsar. Era prazeroso estar ali. Bom e errado. N?o houve remorso no momento em que suas saíram de seu corpo. Nem quando come?ou a se tocar, para ninguém, para nada, para os gemidos. Inexistentes.

  Ficou ali por horas. Deitado sobre pessoas e ch?o grudento.

  E ent?o... ouviu. Passos do lado de fora. Vozes.

  Alguém abrindo a porta do 302.

  Correu, guiado pelo som, pelo desespero.

  Na parede oposta, onde um espelho deveria estar, havia um vidro.

  Um espelho de duas faces.

  Do outro lado — seu apartamento. O 302. Vazio.

  Sem móveis. Sem vestígios de sua existência.

  Um casal entrou. Jovens, sorridentes, trazendo caixas.

  — é menor do que eu imaginava — disse ela.

  — Mas é só por enquanto — respondeu o homem.

  Ele gritou.

  Bateu no vidro com as m?os. Fortes.

  De novo.

  De novo.

  — Ei! EI! EU T? AQUI!

  Do outro lado, o homem hesitou. Virou-se para o espelho.

  Aproximou-se, curioso.

  Encostou o ouvido no vidro.

  Ele gritou ainda mais alto, socando com as m?os abertas, desesperado.

  O homem recuou um pouco. Seus olhos se arregalaram. Mas... algo neles mudou. Brilho.

  Desejo.

  Luxúria.

  Ele sorriu. Um sorriso leve, quase envergonhado.

  E voltou a encostar o ouvido no espelho.

  Como se estivesse ouvindo... gemidos.

Recommended Popular Novels